São Paulo, sexta-feira, 13 de outubro de 1995
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Bob Wilson abraça Broadway com "Alice"

NELSON DE SÁ
ENVIADO ESPECIAL A NOVA YORK

O Next Wave Festival, ou festival da próxima onda, iniciado no último fim-de-semana em Nova York, passa por grandes, fundamentais mudanças.
Em sua 13ª edição, descobriu afinal que vanguarda institucionalizou-se, envelheceu e não é mais a próxima onda -a vanguarda de Robert Wilson, de Richard Foreman, Peter Sellars, que dominaram a última década a partir do palco da mesma Brooklyn Academy of Music (BAM), onde acontece o festival.
Já no ano passado as mudanças levaram até a BAM a companhia inglesa Cheek by Jowl, de Declan Donnellan.
Na descrição do próprio festival, a apresentação de ``As You Like It" -vista em São Paulo dois anos atrás, no Tuca- foi ``a sensação da temporada" com ``o seu credo de que, se uma peça é um clássico, derrubem os cenários elaborados e deixem a língua voar alto".
Este ano, em dezembro próximo, a Cheek by Jowl volta a BAM com a montagem de ``The Duchess of Malfi".
Mas antes, neste último fim-de-semana, quem estava lá para abrir o festival era ninguém menos do que Robert Wilson, ``o patriarca da vanguarda" -outra descrição, agora irônica, do festival. Mas Bob Wilson mudou.
No início da década, quando esteve em São Paulo para a Bienal, com ``When We Dead Awaken", de Ibsen, já era possível distinguir um esforço de aproximação dos clássicos, ou do texto.
O deslumbramento da cenografia começava a dar espaço às palavras. A lendária rejeição à narrativa linear e o desprezo pelo gosto do público começavam a perder fôlego.
Em ``Alice", que abriu o Next Wave Festival, a mudança apresenta-se completa. Não fosse pela exigência de legendas para alguns trechos em alemão (a produção é originalmente alemã, do teatro Thalia, de Hamburgo), o espetáculo poderia ser levado para a Broadway, para se apresentar com êxito ao lado de musicais mais populares, como ``Cats" ou ``Victor/Victoria".
``Alice" é um musical com livro de Paul Schmidt, músicas e letras de Tom Waits e Kathleen Brennan.
A presença de Tom Waits, em particular, é o que aproxima o trabalho de Bob Wilson de uma produção mais popular. As músicas leves, com grande dose de humor, surgem aqui e ali para envolver o público. São músicas populares, que poderiam muito bem estar sendo programadas para a MTV.
Aliás, Bob Wilson parece ter consciência de que a união com Tom Waits indica um caminho de renovação para o seu trabalho: este já é o segundo musical, depois de ``The Black Rider", dois anos atrás, na Alemanha.
Nesta direção, também as letras, com alguma carga de surrealismo -e nem poderia ser diferente, com uma peça parcialmente baseada em ``Alice no País das Maravilhas", de Lewis Carroll-, mais parecem trocadilhos cômicos.
Os jogos concretos de palavras, um lugar-comum desta vanguarda das últimas décadas, aliás bem representada na figura de Paul Schmidt, Ph.D. por Harvard, também são a marca dos diálogos, e também com um inesperado impacto cômico.
Paul Schmidt, vale dizer, vem servindo de tábua de salvação aos diretores da vanguarda envelhecida, na atual aproximação com o texto. Foi ele o responsável pela transcriação de ``As Três Irmãs", de Tchecov, para a montagem de ``Brace Up!" realizada pelo Wooster de Elizabeth LeCompte, no início destes anos 90.
No livro de ``Alice", Schmidt recorre não apenas aos textos de Lewis Carroll, mas à própria história pessoal do escritor na sua relação com a menina Alice Lidell, para quem escreveu e leu as primeiras versões das histórias de Alice.
O espetáculo indica abertamente uma paixão ``voyeur" de Carrol por Lidell e erotiza a trama.
O caminho de sensualidade é reforçado pela atriz que faz Alice, a alemã Annette Paulmann, segura o bastante -na representação de uma Alice nada infantil- para se destacar no palco com a interpretação, o que é ou era raro em se tratando de Wilson.
O próprio, diante de tal concorrência, na música, na dramaturgia, na interpretação, parece estranhamente confinado. É o diretor, com certeza a voz comandante e final no texto, nos números musicais, na atuação, mas a sua presença é notada como protagonista só nos cenários e figurinos.
Cenários e figurinos que são belos, assombrosos, como sempre. Por exemplo, quando a lagarta, sobre o cogumelo, começa a crescer até tomar conta de todo o palco. Ou quando as flores, vestindo parangolés, dançam em torno de Alice. Ou quando Alice é representada, de início, não pela atriz, mas por um modelo de cadeira.
Só então é possível ouvir à distância, em eco, o velho bordão de Bob Wilson para o público diante de seus espetáculos: ``Tudo o que você puder pensar é verdadeiro." Não mais, não mais.

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