São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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Costelas de Adão

GUILLERMO CABRERA INFANTE
ESPECIAL PARA A FOLHA

O último filme de Pedro Almodóvar, "A Flor do Meu Segredo, começa, como "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", com uma mentira: neste, uma dublagem, naquele, uma conversa entre médicos de pacientes terminais e uma mãe que sofre.
Mas "A Flor do Meu Segredo" não é, como "Mulheres", uma comédia louca, e sim a vida, paixão e morte (literária) de uma mulher casada que quer se divorciar. Não de seu marido ausente, a quem ela ama com um amor unilateral, mas de seu ofício de sonhos felizes. São felizes seus romances, assim como tudo que roça a rosa, mas a romancista sofre, desmesuradamente infeliz. Como sofriam as mulheres antes do cinema tornar-se feminista: quando era politicamente incorrigível.
Sempre acreditei que há autores, como Manuel Puig, que conhecem as mulheres melhor do que a maioria dos homens e evidentemente mais do que muitas feministas, que transformaram o feminismo em uma causa: a contrapartida exata do machismo.
Foi Oscar Wilde quem declarou que a diferença entre uma grande paixão e um capricho é que o capricho dura mais. Almodóvar aposta na grande paixão e esta, é claro, não dura nada. Mas não existe pior sugestão do que aquela que não se faz.
Os diretores franceses da Nouvelle Vague resolveram a dicotomia do crítico enquanto artista, de Wilde no final do século 19, 50 anos mais tarde, quando converteram os críticos em artistas. Mas Almodóvar não deve nada à crítica de cinema nem a esse exercício inútil que é a crítica da sociedade. Seus filmes não se parecem com nada nem com ninguém. Se se parecem com alguma coisa, é com outro filme de Almodóvar. Isso se chama, em outras partes de arte, de estilo. Em cinema, já o disse Alfred Hitchcock, "o estilo se parece com a antropofagia, mas apenas quando os canibais somos nós mesmos".
Gosto de Almodóvar quando ele ri, porque nos faz rir. Mas, coisa curiosa, sua obra-prima absoluta, "A Flor do Meu Segredo", não suscita risos. Pelo contrário -é seu filme mais dramático, por vezes desesperado, e é ao mesmo tempo uma flor desse gênero que o cinema cultivou desde seu jardim de infância: o filme para mulheres.
A personagem de Paredes lembra aquela que representou em "De Salto Alto": uma grande cantora, mas um mito pequeno, recebe a homenagem, entre pura e paródica, de um travesti. A cantora é extraordinária apenas na ficção. Na realidade é uma doente, mais do eu do que do coração: um ser doente do ser. Seu coração é todo trevas, redimido apenas pelo final trágico. Ali terminam e começam as semelhanças.
Os filmes de Almodóvar mostram um sentido da estrutura interna já desde o roteiro, que ele mesmo sempre escreve com um conhecimento seguro do cinema e uma ingenuidade literária não isenta de certo encanto popular.
A característica que mais chama a atenção na arte de Almodóvar é sua inteligência, num diretor que à primeira vista parece totalmente intuitivo, que improvisa mais do que prepara, que labora mais do que elabora, numa orquestração das partes que se vê musical, enquanto o próprio Almodóvar, para conseguir seu clima sexual ou sentimental depende diretamente da música, e quase sempre da música popular.
Agora é Bola de Nieve cantando seu bolero, assinado por seu alter ego Ignacio Villa, "Ay, amor" (Ai, Amor) -que deveria se chamar "Hay amor" (Há Amor).
Almodóvar, que colocou Marisa Paredes no centro de "De Salto Alto", agora faz dela o eixo concêntrico, numa atuação que lembra, por sua intensa solidão, a da sofrida Joan Crawford dos anos 40 e 50 de "Alma em Suplício" e "Folhas Mortas", melodramas maduros. Em "Folhas Mortas, Joan também escreve incessantemente à máquina, como Marisa. Mas, como adverte Leo, ela é uma escritora, enquanto Crawford era uma datilógrafa.
Almodóvar parece, neste filme, estar fascinado com a letra impressa e faz com que sua protagonista, como Quixote em Barcelona, vá a um jornal, o "El País", e visite sua redação, à qual chega, entre fragmentos de vitrais, como a uma catedral submersa no silêncio dos computadores. A seguir, ela, como fizera Cervantes anteriormente, se deixa seduzir pelo estrondo da gráfica.
É curioso que "A Flor de Meu Segredo" (título que cairia muito bem numa televonela venezuelana) termine com uma cena que parodia o final de "Ricas e Famosas". Em "A Flor do Meu Segredo", o segredo final é que aqui o excelente Echanove, no papel (jornalístico) de Ángel, e a romancista, que não por seu gosto se chama Leo (de Leocádia, seu nome, mas também de leio) se sentam diante do amor da luz, o único amor possível entre ela e ele. É, como muitas vezes em Almodóvar, um final feliz. Que é o final aparentemente inventado por Hollywood. Mas vocês têm lido a "Odisséia" ultimamente? Ali um herói sofre dez anos de infelicidade no desterro para depois regressar a sua casa, seu lar e sua mulher, uma das protagonistas, que o esperava, mas não desesperava. Um beijo.
Os filmes de Almodóvar ("Mulheres", "De Salto Alto", "Kika") parecem pertencer ao que é conhecido como o "efêmero pop", do qual é preciso distinguir entre o pop industrial de Andy Warhol e o pop pictórico puro de David Hockney. Há elementos na arte de Almodóvar em que as referências pictóricas são bem visíveis. Essa é a diferença entre ele e Tarantino, seu semelhante. Os dois fazem arte referencial, mas as referências de Tarantino são sempre outros filmes, embora em seu título mais conhecido faça referência à arte literária popular dos romancistas "pulp", e não "pop". As referências de Almodóvar são ocultas, mas mais cultas.
Em "A Lei do Desejo", Almodóvar cedeu a voz a Bola de Nieve, em "Mulheres" La Luna cantou "Teatro" como ninguém. Agora é a vez do assombroso músico que é Caetano Veloso, que canta "Tonada de la Luna Llena", tão delicada quanto o campo amarelo, que é uma passagem para que Leo volte a ser a Leocádia da aldeia. Como contraste entre uma realidade e outra, Almodóvar retrata Madri sofisticada e podre, feita de pedra e cristal, dinâmica. Roma era de Fellini e Nova York é de Woody Allen. Madri pertence a Almodóvar.
É um "tour de force" de Almodóvar criar uma história de sentimentos previsíveis e com eles armar um romance de amor. Há agora um grande romance, em lugar de uma paixão.
Nem tão divertido quanto "Mulheres" nem tão inquietante quanto "De Salto Alto", "A Flor do Meu Segredo" é o melhor filme de Almodóvar até agora. O mais perfeito tecnicamente, o melhor escrito e o mais moralmente integrado; este espectador sentiu em todo momento que estava diante de uma obra maior. Esqueçam George Cukor, Mitchell Leisen e até mesmo Claude Chabrol -Pedro Almodóvar é agora o melhor inventor de mulheres do cinema: uma espécie de Adão com costelas suficientes para criar várias Evas.
Freud, não em seu suave divã mas em seu leito de morte, confessou que nunca soube o que queriam as mulheres. Agora eu sei: Almodóvar sabe. Esse é o segredo dessa flor que, astuciosamente, exibe em sua lapela.

Tradução de CLARA ALLAIN

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