São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Semelhanças unem diretor ao Brasil

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A repercussão que o cinema de Pedro Almodóvar encontrou no Brasil faz pensar. De tempos em tempos, a crítica e o público brasileiro demonstram receptividade com artistas não reconhecidos nos grandes centros. Esse fenômeno ocorreu, por exemplo, com Ingmar Bergman, cujo "Noites de Circo" foi aplaudido de pé no Festival de Cinema do 4º Centenário de São Paulo, em 1954. A nova geração de críticos dos ``Cahiers du Cinéma" só viria a descobrir diretor sueco, em Cannes, em 56, com a projeção de "Sorrisos de uma Noite de Amor".
Guardadas as proporções, com Almodóvar a história foi semelhante. Antes do sucesso de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", já existiam ciclos inteiramente dedicados à sua obra e acompanhados de ampla cobertura na imprensa. A empatia entre diretor e platéia era evidente durante a exibição de seus filmes. Quais seriam as razões dessa afinidade?
No início dos anos 80, uma atmosfera comum aproximava Espanha e Brasil. Ambos os países, predominantemente católicos, saíam de um longo período de ditadura militar e ansiavam por ingressar, respectivamente, na Comunidade Européia e no Primeiro Mundo. Os ventos da abertura, que queriam varrer qualquer traço projetado por estereótipos nacionais, sopravam a favor de tudo que significasse cosmopolitismo.
Em função desta disposição coletiva, o cinema de Almodóvar, mesmo parecendo um fenômeno individual, deve ser entendido como a visão de um artista capaz de traduzir aspirações gerais. Por isso, a pulsão que deu real visibilidade ao seu trabalho está permanentemente vinculada à famosa "movida madrilenha".
Embora sejam artistas desconhecidos no Brasil, é importante, para compreender o ambiente criativo da época, ressaltar a presença da cantora Alaska, em "Pepi, Lucy, Bom y Otras Chicas del Montón"; a do humorista Javier Gurruchaga em "O que Fiz para Merecer Isto?"; do travesti Bibi Andersen em "Matador" e em "A Lei do Desejo". Assim como são importantes as atividades do próprio Almodóvar, participando do grupo teatral "Los Goliardos", do conjunto "McNamara", da revista ``La Luna", na qual criou Pathy Diphusa. Entre 1978 e 1983, Madri foi reinventada por uma geração. Havia no ar uma alegria de viver, uma liberdade moral típica das épocas radicais em que se respira experimentalismo e utopia.
A simpatia do público brasileiro pelos primeiros filmes de Almodóvar, "Pepi, Lucy..." até "O Que Fiz..." talvez resida no fato de lembrarem, sob vários ângulos, o espírito paródico da nossa chanchada e a precariedade técnica do nosso "udigrudi". Em Almodóvar atraía a possibilidade de rir da modernidade que, até então, havia dado com os burros n'água.
"Matador" inaugura uma segunda etapa de sua obra. O diretor passa a discutir clichês e símbolos centrais de uma Espanha passadista. Nesse sentido, a irrupção de Almodóvar provocou um envelhecimento precoce de boa parte da filmografia sobre a Guerra Civil, sobre a rigidez da ``madre" e sobre militares esquemáticos. Por outro lado, reatou com a tradição cinematográfica próxima da veia cômica de Luis Berlanga, de Rafael Azcona (fez "El Cochecito", com Marco Ferreri) e Fernando Fernán Gómez. Mas, esta virada, é bom que se diga, veio atrelada a uma evolução técnica e à sofisticação dos cenários e personagens.
Os críticos mais ácidos não perdoaram, insistiam que a primeira etapa era mais radical. Diga-se de passagem, os mesmos críticos que na época diziam que Almodóvar não sabia nem sequer enquadrar. Agora que seus movimentos de câmara são complexos e inovadores, o argumento é de que faz filmes caros e que estaria perdendo seus vínculos com a marginalidade, matriz de suas histórias. Esta cruzada crítica pode ser ilustrada por meio do escritor Cabrera Infante que chegou a chamá-lo de ``Almodólar".
No Brasil, a simpatia continuou firme. O público se identificou novamente com a trajetória do cineasta, enxergando nos avanços técnicos e na progressiva sofisticação, uma brecha para conjugar o clima de abertura político-cultural com o ingresso numa economia desenvolvida. No âmbito da nossa cinematografia, houve um reconhecimento de que o fenômeno Almodóvar era uma prova cabal da eficaz aliança entre Estado (a ministra e cineasta Pilar Miró foi responsável por uma ousada política de subvenção) e cinema de autor.
Almodóvar confirma a ausência de preconceitos quando focaliza um casal de homossexuais em "A Lei do Desejo" e depois mergulha na heterossexualidade de "Ata-me". Não é um cineasta da sensibilidade gay. Fala de sexo sem cair no registro da perversão. A marca Almodóvar está no tom folhetinesco, no ritmo abolerado da câmara, nas cores fortes dos cenários e na luz do céu de Madri.
Almodóvar e o Brasil estão atualizando velhas parcerias. Se Maísa cantou "Ne me Quitte Pas" em "A Lei do Desejo", agora é Caetano Veloso que encerra "A Flor do Meu Segredo" com "Tonada de Luna Llena".

Texto Anterior: Em busca de outros segredos
Próximo Texto: O elo quase perdido
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.