São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995 |
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Semelhanças unem diretor ao Brasil
AUGUSTO MASSI
Guardadas as proporções, com Almodóvar a história foi semelhante. Antes do sucesso de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", já existiam ciclos inteiramente dedicados à sua obra e acompanhados de ampla cobertura na imprensa. A empatia entre diretor e platéia era evidente durante a exibição de seus filmes. Quais seriam as razões dessa afinidade? No início dos anos 80, uma atmosfera comum aproximava Espanha e Brasil. Ambos os países, predominantemente católicos, saíam de um longo período de ditadura militar e ansiavam por ingressar, respectivamente, na Comunidade Européia e no Primeiro Mundo. Os ventos da abertura, que queriam varrer qualquer traço projetado por estereótipos nacionais, sopravam a favor de tudo que significasse cosmopolitismo. Em função desta disposição coletiva, o cinema de Almodóvar, mesmo parecendo um fenômeno individual, deve ser entendido como a visão de um artista capaz de traduzir aspirações gerais. Por isso, a pulsão que deu real visibilidade ao seu trabalho está permanentemente vinculada à famosa "movida madrilenha". Embora sejam artistas desconhecidos no Brasil, é importante, para compreender o ambiente criativo da época, ressaltar a presença da cantora Alaska, em "Pepi, Lucy, Bom y Otras Chicas del Montón"; a do humorista Javier Gurruchaga em "O que Fiz para Merecer Isto?"; do travesti Bibi Andersen em "Matador" e em "A Lei do Desejo". Assim como são importantes as atividades do próprio Almodóvar, participando do grupo teatral "Los Goliardos", do conjunto "McNamara", da revista ``La Luna", na qual criou Pathy Diphusa. Entre 1978 e 1983, Madri foi reinventada por uma geração. Havia no ar uma alegria de viver, uma liberdade moral típica das épocas radicais em que se respira experimentalismo e utopia. A simpatia do público brasileiro pelos primeiros filmes de Almodóvar, "Pepi, Lucy..." até "O Que Fiz..." talvez resida no fato de lembrarem, sob vários ângulos, o espírito paródico da nossa chanchada e a precariedade técnica do nosso "udigrudi". Em Almodóvar atraía a possibilidade de rir da modernidade que, até então, havia dado com os burros n'água. "Matador" inaugura uma segunda etapa de sua obra. O diretor passa a discutir clichês e símbolos centrais de uma Espanha passadista. Nesse sentido, a irrupção de Almodóvar provocou um envelhecimento precoce de boa parte da filmografia sobre a Guerra Civil, sobre a rigidez da ``madre" e sobre militares esquemáticos. Por outro lado, reatou com a tradição cinematográfica próxima da veia cômica de Luis Berlanga, de Rafael Azcona (fez "El Cochecito", com Marco Ferreri) e Fernando Fernán Gómez. Mas, esta virada, é bom que se diga, veio atrelada a uma evolução técnica e à sofisticação dos cenários e personagens. Os críticos mais ácidos não perdoaram, insistiam que a primeira etapa era mais radical. Diga-se de passagem, os mesmos críticos que na época diziam que Almodóvar não sabia nem sequer enquadrar. Agora que seus movimentos de câmara são complexos e inovadores, o argumento é de que faz filmes caros e que estaria perdendo seus vínculos com a marginalidade, matriz de suas histórias. Esta cruzada crítica pode ser ilustrada por meio do escritor Cabrera Infante que chegou a chamá-lo de ``Almodólar". No Brasil, a simpatia continuou firme. O público se identificou novamente com a trajetória do cineasta, enxergando nos avanços técnicos e na progressiva sofisticação, uma brecha para conjugar o clima de abertura político-cultural com o ingresso numa economia desenvolvida. No âmbito da nossa cinematografia, houve um reconhecimento de que o fenômeno Almodóvar era uma prova cabal da eficaz aliança entre Estado (a ministra e cineasta Pilar Miró foi responsável por uma ousada política de subvenção) e cinema de autor. Almodóvar confirma a ausência de preconceitos quando focaliza um casal de homossexuais em "A Lei do Desejo" e depois mergulha na heterossexualidade de "Ata-me". Não é um cineasta da sensibilidade gay. Fala de sexo sem cair no registro da perversão. A marca Almodóvar está no tom folhetinesco, no ritmo abolerado da câmara, nas cores fortes dos cenários e na luz do céu de Madri. Almodóvar e o Brasil estão atualizando velhas parcerias. Se Maísa cantou "Ne me Quitte Pas" em "A Lei do Desejo", agora é Caetano Veloso que encerra "A Flor do Meu Segredo" com "Tonada de Luna Llena". Texto Anterior: Em busca de outros segredos Próximo Texto: O elo quase perdido Índice |
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