São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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Mistérios do casamento

BERNARDO CARVALHO
ESPECIAL PARA FOLHA

Num mundo onde o lobby, o marketing, o arrivismo, o puxa-saquismo e o compadrio parecem ter se sobreposto às obras e ao gosto pela literatura, um livro como ``Coração Tão Branco", do espanhol Javier Marías, serviria já de saída como um princípio de realidade, um antídoto contra a impostura do mercado, em nome de uma lembrança cada vez mais remota: existe uma coisa que se chama literatura.
Marías é um escritor jovem (44) que faz literatura de verdade pelo menos desde os 20 anos e que, por uma feliz coincidência, tornou-se best seller na Espanha com um livro de verdade (o próprio ``Coração Tão Branco", 1993), o que é uma raríssima exceção.
O escritor faz parte daqueles que expõem um determinado assunto (corriqueiro, por vezes banal) sob uma luz inesperada, dando-lhe contornos antes impensáveis, elevando-o, nesse foco original, a uma dimensão perturbadora da percepção comum, muitas vezes desconcertante, quase mítica.
``Coração Tão Branco" dá ao tema do casamento um tom estranho e misterioso, capaz de, atravessando a percepção domesticada e muitas vezes viciada que temos do assunto, fazê-lo ressurgir com um sentido inédito, uma nova brutalidade de significados, do qual não se pode excluir um humor deslavado.
Nesse sentido (pela recriação radical dos significados, pelo humor impiedoso, a partir de um tema básico como o casamento), ``Coração Tão Branco" é o livro de Marías que mais se aproximaria de Nelson Rodrigues. Mas só aparentemente, porque o ``método" do autor, já presente nos excelentes romances ``El Hombre Sentimental" (1986) e ``Todas las Almas" (1989), é o de refazer os sentidos pela criação de uma rede de relações analógicas entre acontecimentos díspares e, à primeira vista, estranhos uns aos outros.
Sua ``técnica" narrativa estabelece um suspense na insinuação (muitas vezes restrita à cabeça do narrador) de que há algo em comum entre todos os fatos, um inter-relacionamento de base entre todas as coisas. O enigma surge justamente no momento em que as aparências passam a encobrir tudo, fazendo com que as situações sejam percebidas como díspares.
A narrativa de Marías avança insinuando que existem conexões de fato, que no fundo uma coisa não está separada da outra, por mais díspar que possa parecer, e que é ao associá-las umas às outras que se terá alguma chance de vislumbrar um enigma primordial (neste caso, no casamento).
Não seria disparatado dizer que há algo de paranóico nesse procedimento narrativo e que Marías faz dessa paranóia velada uma das grandes originalidades de sua prosa, combinada com o humor. Uma paranóia humorada, o que é uma contradição em termos, já que se trata de uma ``paranóia" que sabe rir de si mesma -e como!
Assim, uma cena de rua em Havana, durante a lua-de-mel do protagonista e narrador, pode obcecá-lo ao longo de todo o romance, levando-o a tentar conectá-la à força a tudo o que o cerca, a tudo o que passa sob seus olhos (de uma citação de Shakespeare aos encontros amorosos de uma amiga manca, em Nova York, com um desconhecido). É como se ali estivesse um sinal esotérico, algo que daria um sentido a toda a sua história, ligando de alguma forma o mistério familiar (três mulheres morreram ao se envolverem afetivamente com seu pai) ao seu próprio casamento.
O que mais fascina no livro de Marías, o primeiro do escritor a ser publicado no Brasil, em tradução sensível de Eduardo Brandão, é justamente esse suspense, que resulta num tipo de mal-estar permanente dos personagens e que caminha para a solução de um mistério do passado (de suicídio e assassinato) numa combinação equilibrada de tragédia e humor.
Trata-se de um suspense no qual a suspeita em torno das relações amorosas, do que não é dito entre os dois parceiros, mas vivido no silêncio e na intimidade de cada um, incomunicável, provoca uma reflexão obsessiva sobre a artificialidade do casamento, sobre um rastro de sangue e gargalhadas.
Por exemplo: o capítulo em que o protagonista, um intérprete e tradutor de organizações internacionais, conhece a futura mulher, também uma intérprete, é provavelmente um dos trechos mais hilariantes de tudo o que se produziu em literatura nos últimos anos e, ao mesmo tempo, um exemplo agudo e sarcástico da suspeita e da incomunicabilidade quase trágica de que trata o livro.
Tendo que fazer a tradução simultânea de um encontro privado entre o chefe de Estado espanhol e a chefe de Estado inglesa (algo como Felipe González e Margaret Thatcher), sob os olhos da futura mulher, colocada ali justamente para controlar o rigor da tradução, o narrador, aborrecido com o tom insosso do diálogo, resolve tornar mais ``criativa" a sua tradução, levando os dois chefes de Estado, que não entendem uma palavra da língua um do outro, a uma conversa absolutamente surrealista. Ainda mais por terminarem se entendendo. Como nos casamentos.

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