São Paulo, domingo, 15 de outubro de 1995
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A dentadura de Washington

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA A FOLHA

À memória de Tiradentes
Bande Mataram! Bande Mataram! O refrão vem ressoando em meus ouvidos por todo este último verão, que passei nos arquivos do India Office, de Londres, estudando a primeira explosão de nacionalismo no Raj britânico. Bande Mataram! (algo como ``Viva a Mãe-Índia!") era o grito de guerra dos nacionalistas que, no começo do século, desejavam expulsar os feringhees (estrangeiros). Era seu ``Liberdade, Igualdade, Fraternidade": levava-os às lágrimas e, ocasionalmente, a ataques suicidas com bombas. Seu fascínio, para um feringhee, está em sua incompreensibilidade. O que significa Bande Mataram para mim?
E ``Liberdade, Igualdade, Fraternidade", o que significa? Dois séculos de tempo ruim quase apagaram as palavras das prefeituras francesas. Duvido que ainda ressoem na alma de muitos franceses de hoje. No máximo consegue-se ouvir uma paródia: ``Nem liberdade, nem igualdade, nem fraternidade, mas um pouquinho mais de mostarda, s'il vous plaŒt". A última vez em que notei um nó de emoção patriótica na garganta de um francês foi numa exibição de ``Casablanca", quando Paul Henreid lidera a multidão que canta a ``Marseillaise".
E, entretanto, há homens se matando por uns poucos quilômetros quadrados na Bósnia ou para morrer pela Grande Sérvia -coisas igualmente inconcebíveis. Morrer pela Irlanda unida? O Sinn Fein ainda se recusa a entregar suas armas, e os unionistas do Ulster ainda estão prontos para explodir pubs católicos. Os terroristas do ETA ainda matam em nome da Pátria Basca. Curdos assassinam na Turquia, palestinos em Israel, sikhs no Punjab -tudo em nome de alterações do mapa. O mesmo acontece em Chipre, Sri Lanka, Azerbaidjão, Tchetchênia...
Não há razão para recitar por inteiro uma lista que todos conhecemos. Só não conhecemos nem compreendemos a paixão que leva homens a matar por tais causas. Para nós -aquela pequena minoria de ocidentais bem nutridos e educados-, a palavra final foi pronunciada por Robert Graves ao final da Segunda Guerra Mundial: ``Adeus a isso tudo. Nossos pais lutaram na guerra para dar um fim ao nacionalismo, não para desencadeá-lo". Mas a cada dia vemos suas novas explosões em nossos aparelhos de TV. Como podemos entender o impulso a morrer por fantasias oitocentistas como a Mãe-Índia?
Ouçamos Ajit Singh, nacionalista ardoroso, insuflando uma multidão de hindus em Rawalpindi em 1907, conforme o relato de um agente de polícia que secretamente anotou suas palavras: ``Morram por seu país. Somos trinta crores (300.000.000), eles são um lakh e meio (150.000). Um sopro de vento os expulsaria. De pouco lhes valem os canhões. Um dedo pode ser facilmente quebrado; quando cinco dedos formam um punho, ninguém pode quebrá-lo (com ênfase; jogam-lhe flores)".
Não há como não entender. Mas somos de fato capazes de ``captar" a chuva de flores, os pés descalços batendo no chão, as canções irrompendo de todos os peitos, os rapazolas correndo a prestar juramentos de sangue, os velhos com lágrimas nos olhos, o nó em todas as gargantas?
A letra permanece, mas a música já se foi -ao menos para os que dão ouvidos a Robert Graves e gostariam de acrescentar: ``Adeus e até jamais! Que o nacionalismo morra mil vezes e não se reerga jamais". Mas aí está ele, não tão longe que não se possa ouvi-lo de Londres, Paris ou Roma. Como entender sua força -se não com simpatia, ao menos com alguma empatia?
Só nos resta o recurso às nossas próprias tradições nacionais. Por mais que a sanguinolência patriótica do nosso passado possa nos horrorizar, até mesmo os mais sofisticados de nós já sentiram numa ou noutra ocasião aquele peculiar nó na garganta.
Eu mesmo, devo confessar, sofri um acesso de engasgo patriótico durante uma visita guiada ao Independence Hall em Filadélfia, há poucos anos atrás. Ali sentara-se Washington, explicava o guia, naquele mesmo aposento. Era uma bela cadeira georgiana, com um sol emblemático escavado em seu encosto, e dali Washington presidira a Convenção Constitucional de 1787. Num momento particularmente difícil dos debates, quando o destino da jovem república parecia em jogo, Benjamin Franklin, sentado bem aqui, perguntara a George Mason, sentado logo ali: ``O sol está nascendo ou descendo?". Conseguiram vencer aquele impasse e outros mais. E, quando haviam por fim acabado seu trabalho, Franklin disse: ``O sol está nascendo".
``Que grandes homens eram eles", pensei comigo, o nó apertando mais e mais em minha garganta. ``Washington, Madison -e Jefferson, dando conselhos a Lafayette naquele primeiro momento da Revolução Francesa. Como eram superiores aos nossos políticos atuais".
Um estrangeiro provavelmente não poderia entender minha emoção. O culto à Constituição e aos pais fundadores deve parecer um folclore curioso quando visto de fora. E, mesmo entre os americanos, Washington já não suscita tanta emoção. Ao contrário de Lincoln e Roosevelt, ele parece demasiado rígido e ereto nos retratos de Gilbert Stuart, as mandíbulas imóveis, os lábios cerrados, o cenho severo -mais um ícone que um ser humano. Ícones prestam-se à adoração, mas o Washington icônico mais cultuado nos EUA é aquele que figura nas notas de um dólar.
Não que o culto ao dólar seja tão mau assim. Seu alcance emocional é limitado, mas não letal. Ao contrário do nacionalismo, inspira antes o interesse próprio que o auto-sacrifício e o investimento muito mais que os atentados. Por crasso que seja, é ecumênico: meu dólar vale tanto quanto o seu. Isso pode não soar tão sublime quanto Liberdade, Igualdade, Fraternidade, mas mesmo assim tornou possível uma vida nova no Novo Mundo para milhares de imigrantes e pode ajudar a renovar a Rússia de hoje, onde o dólar tornou-se a moeda corrente.
Essa linha de pensamento tem ancestrais respeitáveis: a fisiocracia francesa, a filosofia moral escocesa, o utilitarismo inglês. Mas ela nos distancia das paixões que inspiraram nossos ancestrais no começo do século passado, quando se cultuava Washington por toda parte, em prosa e verso, em pinturas e esculturas. Se não podemos partilhar essa emoção, podemos ainda assim aprender algo se olharmos para o homem por detrás do ícone.
Certa vez, visitando a propriedade rural de Washington em Mount Vernon, dei de encontro a uma das mais estranhas relíquias que se poderia encontrar num santuário nacional, mais estranha que o bricabraque no Museu Lênin de Moscou ou no Museu Wellington de Londres: a dentadura de George Washington. Ali estava ela, sob a redoma de vidro -feita em madeira! O pai da pátria com dentes de madeira! É por isso que ele parece tão sisudo nos retratos: o homem sofria de dores incessantes. Não podia mastigar sua carne sem desencadear ondas de dor nas gengivas.
Perguntam-me várias vezes se, como especialista no período, eu gostaria de viver no século 18. Respondo que, em primeiro lugar, gostaria de nascer bem acima do campesinato; em segundo lugar, nada de dor de dente, por favor. Ao ler milhares de cartas de pessoas de todas as extrações sociais, encontrei muitas vezes com dores de dente. A dor atravessa a linguagem arcaica e chega até o presente: imagino o autor da carta, esperando apavorado que o próximo tiradentes ambulante chegue à cidade e, por meio de uma rápida sessão de tortura, ponha fim a semanas de agonia.
Hoje em dia, temos menos dores de dente e mais mostarda, boa parte dela de primeira qualidade, de Dijon. Podemos chamar isto de Progresso? Eis aqui uma outra idéia do setecentista que parece ambígua depois de dois séculos de sofrimentos. Progresso, Nação, Humanidade: talvez devêssemos pôr de lado tais abstrações grandiosas que vêm rolando do passado, esmagando tantas vidas no presente. Não estou atacando a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, e sim advogando em favor dos avanços modestos e paulatinos do prazer sobre a dor, isto é, pelo progresso com ``p" minúsculo. E este só virá, creio eu, se aprendermos a ser céticos frente a causas universais, a conter o impulso à destruição, a ranger nossos dentes frente ao fanatismo, lembrando-nos como era difícil para Washington ranger os seus.

Tradução de SAMUEL TITAN JR.

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