São Paulo, terça-feira, 17 de outubro de 1995
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Estabilidade e cláusulas pétreas

JOSÉ GENOINO

A principal polêmica em torno da reforma administrativa surgiu a partir do momento em que o deputado Prisco Viana estabeleceu uma vinculação entre estabilidade do funcionalismo público e as cláusulas pétreas da Constituição.
Ou seja, para Prisco e outros deputados que advogam a mesma tese, os atuais funcionários teriam o direito à estabilidade garantida porque se trata de um direito protegido pelo inciso IV do parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que proíbe emendas tendentes a abolir ``os direitos e garantias individuais". Além disso, o parágrafo 4º proíbe emendas tendentes a abolir a forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e periódico e a separação dos Poderes.
A tese sustentada no relatório de Prisco é fruto da falta de clareza da Constituição e, de outro lado, de uma interpretação equivocada de que a estabilidade esteja albergada nas cláusulas pétreas. Quanto ao primeiro aspecto, é preciso notar que todas as Constituições democráticas modernas trazem uma carta de direitos que é uma lista de liberdades ou direitos dos cidadãos protegidos constitucionalmente contra atos do Legislativo, Executivo e Judiciário.
A principal característica desses direitos é a sua universalidade. Isto é, referem-se a direitos de todos os indivíduos e não de uma parte. De modo geral, dizem respeito à liberdade religiosa, à liberdade política, às liberdades civis e às liberdades sociais, particularmente no que se refere à liberdade de organização, de profissão etc.
A rigor, nenhuma Constituição acolhe os direitos sociais no sentido estrito, que em grande medida se confundem com os direitos trabalhistas e previdenciários, na carta dos direitos fundamentais da pessoa humana. Esses direitos nem sequer estão em outra parte das Constituições. Fazem parte da legislação infraconstitucional.
A maior parte dos direitos sociais articula um choque de interesses contraditórios e diz respeito a necessidades de maiorias e minorias sociais que reivindicam sua proteção institucional. Por exemplo, a reforma agrária, quando implica desapropriação, envolve uma luta de um direito de quem não tem terra contra o direito de alguém que tem.
Nas Constituições contemporâneas, foi a Constituição da Alemanha Federal que inaugurou a tendência de introduzir cláusulas pétreas proibitivas de mudanças de partes do texto constitucional nas reformas e revisões.
O parágrafo 3 do artigo 79 da Constituição alemã proíbe mudanças nos artigos 1 e 20, que dizem respeito, respectivamente, aos direitos fundamentais universais e aos fundamentos da Federação e do estado de direito. O parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição brasileira tem a mesma intenção e, quando proíbe mudanças tendentes a abolir direitos e garantias individuais, refere-se aos direitos universais da pessoa humana. A nossa Constituição se presta a confusões quando abriga o capítulo 2, que trata dos direitos sociais, no título dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Feitas essas observações, é preciso dizer que o relatório de Prisco Viana cai numa profunda contradição formal ao defender a tese de que a estabilidade de emprego é protegida pelas cláusulas pétreas e, ao mesmo tempo, admitir a flexibilização da estabilidade para os futuros funcionários.
Os direitos protegidos nas cláusulas pétreas não são passíveis de mudanças abolicionistas por emendas constitucionais nem para os cidadãos do presente nem para os do futuro. Somente uma quebra violenta da ordem constitucional poderá suprimir tais direitos.
Evidenciada a falta de consistência da tese que vincula a estabilidade às cláusulas pétreas, fica claro que ela está regida por norma constitucional normal sujeita a emendas. Essa norma garante direitos aos atuais detentores da estabilidade e a quebra desse contrato deve implicar ressarcimentos indenizatórios que deveriam ser previstos na reforma administrativa ou em lei infraconstitucional.
Quanto à estabilidade em si, o Estado de fato precisa de um funcionamento estável, eficaz e produtivo no atendimento dos interesses públicos. Para tanto, os funcionários precisam de estabilidade no trabalho, o que é algo diferente de uma estabilidade absoluta e inamovível de emprego. Os funcionários precisam ser protegidos contra demissões imotivadas, demissões políticas e reformas casuísticas.
As demissões por conveniência da administração deveriam ser avaliadas por comissões tripartite de representantes do funcionalismo, da administração e da sociedade. As carreiras típicas de Estado devem ser regidas por planos onde a ascensão ocorra em consequência do mérito e de critérios técnicos.
O ingresso ao serviço público não pode ocorrer à revelia do concurso público. Em todos esses pontos a proposta de reforma administrativa do governo tem falhas e lacunas graves. Por isso, é necessário que a oposição, no processo da reforma, apresente alternativas. O PT não se identifica e não é responsável por essa máquina estatal ineficiente e sucateada. Erro é também a suposição de muitas pessoas de que a simples demissão de funcionários solucionará o problema da ineficiência do Estado. A reforma deveria, antes de tudo, redefinir o funcionamento da máquina administrativa, os seus meios e objetivos.
A própria distribuição do funcionalismo sofre graves distorções. Hoje existem funções secundárias com excesso de pessoal e outras funções fins com carência de funcionários. Temos ainda, numa das pontas do funcionalismo, privilégios inaceitáveis para poucos e, na outra ponta, uma massa de funcionários mal-remunerada e desmotivada. Sem o equacionamento dessas e de outras distorções, a reforma administrativa corre o risco de ficar apenas no papel.

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