São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nada importa em "Amores Expressos"

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR-ADJUNTO DO MAIS!

"Amores Expressos", filme de Wong Kar-wai, é um bólido cinematográfico. Lançado do outro lado do mundo, em Hong Kong, deixa um rastro de oxigênio por onde passa. Não há de ser diferente por aqui.
Aparentemente, trata-se de uma história de amor. Na verdade, são duas. Ou melhor, em "Amores Expressos" não há história. Há apenas a expressão dessa ânsia universal por alguém, mas na perspectiva de uma época na qual cada um se interessa exclusivamente por si mesmo.
O que se vê na tela são eventos, sem uma conexão firme que estabeleça uma necessidade e, portanto, uma história. Nem nome os personagens centrais têm. Ambos são policiais identificados por códigos de corporação -223 e 663.
Tudo começa com uma mulher de peruca loura e óculos escuros que corre. Talvez ela esteja fugindo. Pouco importa. O que interessa é que, na fuga, ela esbarrará em 223, o que fará com que ele tome uma decisão: "Eu me apaixonarei por ela dentro de 57 horas".
Antes que seu prazo esgote, 223 sai em busca de latas de compotas de abacaxi com datas de validade prestes a vencer. 223 decidiu que vai esquecer May, sua ex-namorada, dentro de 30 dias. Se acumular 30 latas, e ela não aparecer, ele vai se consolar se empanturrando de compota de abacaxi, sua favorita.
Depois é a vez de 663. Ele vive um intenso caso com uma aeromoça, até que ela desaparece no ar.
Em uma de suas rondas noturnas 663 conhece Faye, uma garçonete. Ela ouve "California Dreamin" sem parar. 663 insiste mas Faye não corresponde ao assédio.
Para abrandar a dor-de-cotovelo 663 passa o tempo conversando com seu Garfield de pelúcia.
Essas caracterizações de personagens durões com coração mole já fariam de "Amores Expressos" um filme inesperado.
Mas é no uso da câmera, na montagem acelerada e na estrutura narrativa em forma labiríntica que assegura sua absoluta novidade.
Wong Kar-wai filma com um sentimento de urgência bastante adequado aos estados afetivos de pura dissipação que põe em cena.
O espaço urbano aparece como um tecido caótico atravessado por um tempo que foge sem parar. Somente as cenas de amor ganham uma duração mais contemplativa.
Para alcançar esses resultados, Wong Kar-wai procede a uma simbiose de técnicas, misturando vídeo e cinema. Para acentuar a solidão de um personagem, por exemplo, ele filma o ator em duração real enquanto as imagens em torno dele correm em acelerado.
E, mesmo que recorra a procedimentos semelhantes, nada lembra um certo esteticismo derivado do videoclipe que vigorou no cinema durante os anos 80.
Este conjunto de experimentalismos faz de "Amores Expressos" o mais bem-vindo dos presentes de aniversário no centenário do cinema.

Texto Anterior: Jean Seberg volta ao estrelato
Próximo Texto: O esplendor vem do Oriente
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.