São Paulo, quarta-feira, 18 de outubro de 1995
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Sem terra e sem capital

NOENIO SPINOLA

O engenheiro agrônomo Francisco Graziano assumiu o Incra com a difícil missão de ouvir Betinho e o mercado. O primeiro ameaça com as penas do inferno quem não ajudar a assentar agricultores sem terra. O segundo, onde o fogo queima sob a forma de preço, só se interessa por uma palavra chamada "competitividade".
Números: o Brasil saiu da auto-suficiência em algodão e passou a maior comprador do mundo graças a alíquotas zero de importação, combinadas com subsídios de 24% e taxas de juros muito menores nos países exportadores.
Quantos cotonicultores e seus empregados foram varridos do mapa? Da quase auto-suficiência em trigo em 1988 fomos para importações de cerca de 5 milhões de toneladas. Ganhou a Argentina e melhorou o balanço de trocas no Mercosul. Chegamos a taxar em 13% a soja exportada, contra 7% dos vizinhos e assim por diante.
Impostos e juros não explicam tudo o que aconteceu no interior do Brasil nos últimos anos nem perdoam muitos setores agrícolas com níveis mais baixos de produtividade (trigo, milho) ou outros que não sobreviveriam sem pesados subsídios. Abertura da economia, taxas, juros, custos de transporte e armazenagem precária ajudam, porém, a entender por que centenas de milhares de agricultores estão perdendo o emprego.
Vivemos simplesmente um paradoxo que não se resolverá sem política. No reverso da medalha que produz os sem-terra, o Brasil é também o país que conquistou a liderança como exportador de frangos congelados, é o maior produtor mundial de cana-de-açúcar e de café, tem o segundo maior rebanho bovino do mundo. Com transporte barato pode, de repente, produzir tanta soja na região de Rondônia quanto a Argentina produz hoje, arrastando para o oeste centenas de milhares de colonos. O sr. Graziano terá, portanto, que convencer os sem-terra a conviver com a agricultura moderna. Terá que encontrar uma solução pelo meio. Como?
De Betinho ouvi, não faz muito tempo, um elogio aos produtores de arroz em Itumbiara. Trata-se de uma experiência de agricultura irrigada, realizada por produtores que receberam terras de uma hidrelétrica. O projeto foi visitado recentemente por Ruth Cardoso.
Quando eram ainda desconhecidos e tinham apenas o suporte de Betinho, os produtores de Itumbiara recorreram a instituições financeiras e a empresários para financiar máquinas e equipamentos. Alguns contribuíram discretamente. Outros se omitiram, outros ajudaram, mas se esconderam ou por vergonha ou por simples medo de dar um apoio ostensivo a um modelo que poderia deflagrar algo politicamente correto (terra de graça e capital de solidariedade), mas economicamente questionável.
Para ser bem-sucedida, a missão do sr. Graziano deve combinar na dose exata a solidariedade com a economia moderna e de larga escala que o fogo do inferno (isto é, do mercado) exige.
No mercado valem somente preço e qualidade. A agricultura moderna deve ser mecanizada, é altamente tecnológica, depende de investimentos em genética, sementes selecionadas, fundos de longo prazo com taxas baixas e de marketing. O produto agrícola não passa de 5% do custo final de um pacote de cereais que a classe média toma no café da manhã. O resto é valor adicionado.
Se não houver agroindústria ao lado do mutirão, nada feito. E o custo de cada emprego na agroindústria pode girar em torno de US$ 25 mil, mais tecnologia, sementes e insumos financiados a juros incompatíveis com o concorrente europeu ou norte-americano. O sem-terra não é apenas um sem-terra: é também um sem-capital e sem-tecnologia.
Some-se ao jogo de sete erros em torno da crise dos sem-terra o mito de que a socialização da terra resolve os problemas de emprego e produção. Não resolve. Nos anos 70 a China e a URSS investiram 20% do PIB anualmente. Quando o Partido Comunista caiu na URSS, 40% da alimentação infantil produzida pelos kolkhozes e sovkhozes era imprópria para o consumo e os soviéticos ostentavam o maior índice de mortalidade infantil da Europa.
Regimes socialistas tampouco garantem emprego. Depois que Felipe González levou a Espanha da direita franquista para a esquerda do PSOE, o desemprego aumentou de 5% para 24%.
No Mercado Comum Europeu, onde se misturam regimes de direita, liberais e social-democratas, há 20 milhões de desempregados com um êxodo rural brutal. O desemprego rural simplesmente não se resolve pela direita ou pela esquerda. No início dos anos 80 só 5,8% dos trabalhadores alemães viviam da agricultura e menos ainda (2,7%) na Grã-Bretanha, que passou longos períodos sob gestão do Partido Trabalhista.
Simplesmente as máquinas tomam o lugar dos bóias-frias. A agricultura moderna é desempregadora de mão-de-obra, criando um problema que só pode ser resolvido pela agroindústria, a agrovila. Entre 1979 e 1987 os salários das pessoas que tinham apenas educação secundária caíram 20% nos EUA.
No mesmo período os salários dos que tinham educação superior subiram 11%. A maior parte dos "business" agrícolas hoje é tecnológica, requer uma escola antes da terra, mão-de-obra qualificada e capacidade competitiva.
No ano 2000 menos de 10% dos trabalhadores viverão em economias isoladas dos mercados mundiais. Quando um sapateiro de Franca (SP) perde o emprego porque o sapato chinês chega aqui a preço vil, o ano 2000 evidentemente parece muito mais perto.
Não basta o Brasil ter o segundo maior rebanho do mundo e couro barato. É preciso ter juro, câmbio, capital de giro, tarifas portuárias, estrutura de vendas, máquinas sofisticadas. Menos de 10% do valor da lata do café vendida num supermercado em Nova York fica na fazenda de origem. O nome completo do jogo é valor adicionado, capital e solidariedade.

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