São Paulo, sábado, 21 de outubro de 1995
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A reforma do Código Penal em debate

SILVIA PIMENTEL; VALÉRIA PANDJIARJIAN

SILVIA PIMENTEL e VALÉRIA PANDJIARJIAN
Nada mais oportuno do que a reportagem da Folha, em 14 último, sobre a reforma do Código Penal português. Dentre as modificações, os crimes sexuais deixaram de ser concebidos como crimes contra a moral e entraram na lista dos crimes contra as pessoas.
Conforme o jurista Jorge Dias, da Universidade de Coimbra, passaram "a denominar-se crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, que são bens eminentemente pessoais". De há muito, esse também tem sido o entendimento do movimento de mulheres brasileiro, latino-americano e do Caribe.
A oportunidade não poderia ser melhor. O Código Penal brasileiro, de 1940, está em via de ser modificado. Em 1984, teve apenas sua Parte Geral reformulada, precisamente onde se delineia o espírito do Código, base da Parte Especial, que define os vários tipos penais. Toda uma década se passou sem que esta sofresse significativa reformulação. É necessária modificação ampla e consistente, que propicie maior unidade ao Código e contemple adequadamente as demandas da sociedade.
Há hoje, no Congresso Nacional, esforço para agilizar essa mudança. Entretanto, vislumbram-se sinais preocupantes e delimitadores da natureza e da qualidade da reforma que se almeja. Neste artigo, vamos nos ater apenas a dois aspectos: aos crimes contra a liberdade sexual e ao aborto.
Há consenso no movimento de mulheres de que os crimes contra os costumes passem a ser considerados crimes contra a pessoa, especificamente contra a liberdade sexual, a exemplo do que acaba de ocorrer em Portugal. Busca-se proteger a pessoa humana e não a moralidade pública.
Tal posição, como nova apreensão axiológica da realidade, exige mudanças no formato do Código, com a criação, supressão e realocação de artigos, implicando, assim, em inevitável alteração numérica de seus dispositivos. É aí onde se encontra uma das maiores resistências por parte de certos parlamentares.
Ora, o argumento de que a mudança da lei penal deverá ficar adstrita à "numeração" do Código vigente até poderia ser sustentável, não fosse imprescindível uma sólida reformulação de conteúdo e filosofia. Os tempos, a realidade social e seus valores são outros. Como, então, privilegiar-se este aspecto formal do Código em detrimento de seu aspecto material? Não seria minimizar a relevância da transformação necessária?
Quanto ao aborto, há também fortes resistências. Sobre este ponto, lembramos, em especial aos parlamentares, que o governo brasileiro, ao assinar a Plataforma de Ação, na 4ª Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, comprometeu-se a "considerar a revisão das leis que contêm medidas punitivas contra as mulheres que realizam abortos ilegais" (parágrafo 107.K). O documento pede ainda atenção aos abortos inseguros que põem em risco principalmente a vida das mais jovens e mais pobres mulheres. Não será, mais uma vez, querer afastar-se da realidade, evitar o debate da revisão legal do aborto em um país onde, a par de sua proibição, realizam-se "clandestinamente" 1,5 milhão de abortos ao ano, com sérias repercussões na saúde e na vida das mulheres brasileiras?
Importa refletir sobre essas questões se, de fato, importa a integração dos direitos das mulheres aos direitos humanos, conforme a Declaração de Viena, de 1993. Aliás, "tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher" é outro compromisso que o Brasil também assumiu ao ratificar, em agosto último, a Convenção de Belém do Pará (OEA).
Os documentos aqui citados representam os novos consensos inter-regionais e internacionais com respeito aos direitos das mulheres. Tem o Brasil condições de honrar esses compromissos? Têm os parlamentares vontade política para tanto? É o que está em questão.

SILVIA PIMENTEL, 55, é membro da Comissão de Cidadania e Reprodução e coordenadora nacional do Cladem (Comitê Latino Americano Para a Defesa dos Direitos da Mulher).
VALÉRIA PANDJIARJIAN, 26, advogada, é pesquisadora do Cladem-Brasil.

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