São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Uma viagem pela violência

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

Depois de investigar a violência policial em várias cidades das Américas, o professor Paul Chevigny, da Faculdade de Direito da Universidade de Nova York, um dos mais importantes advogados de direitos humanos dos Estados Unidos, concluiu: em nenhum lugar encontrou tantos abusos como em São Paulo.
Em 1992, por exemplo, a PM paulista matou 1.470 indivíduos. No mesmo ano, em Nova York, a polícia matou 25, exatamente o mesmo número em Los Angeles -duas cidades americanas em que a polícia é rodeada de acusações de maus-tratos e arbitrariedades.
A média deste ano é de 40 por mês na Grande São Paulo, onde, mês passado, se obteve o menor índice: 15 mortes de civis por policiais. É uma conquista, sem dúvida. É ainda muito: em um mês e meio, atinge-se um ano de mortes em Nova York.
Formado em Harvard, Paul Chevigny fez sua primeira viagem a São Paulo em 1987, numa missão do Human Rigths Watch, uma das principais entidades de direitos humanos do país. Lá encontrou o que se vê até hoje: execuções disfarçadas de tiroteio, impunidade e tortura em delegacias policiais.
Apesar de situações econômicas diferentes, a criminalidade é encarada com a mesma preocupação no Brasil e nos Estados Unidos. Segundo as pesquisas, está no topo dos temores nos dois países. Fácil constatação; porém, para pouca explicação -e, claro, muita mistificação.
Nos Estados Unidos, até no meio intelectual se infiltra o preconceito de que ser negro e violento ou criminoso é mais do que uma contingência social. Teria a ver até com traços genéticos. Na outra ponta, imagina-se que a miséria é a única explicação.
Autor de um dos clássicos sobre a polícia de Nova York, lançado em 1963, "Police Power: Police Abuse in New York City", Chevigny prepara-se, agora, para lançar no próximo mês "Edge of the Knife" (Fio da Navalha, ed. The New Press), resultado da observação nas polícias de São Paulo, Nova York, Los Angeles, Kingston (Jamaica), Buenos Aires e Cidade do México.
Ao tentar entender os fundamentos da violência, ele constata que a polícia é, em essência, a reprodução da ordem -ou seja, reflete as visões e preconceitos da sociedade. Portanto, se a visão dominante coloca o negro como suspeito, a polícia vai reproduzir essa desconfiança, centralizando as arbitrariedades. É o que se vê em Nova York, passando por Los Angeles, até a avenida Paulista, em São Paulo. Tem-se um painel que vai desde as cidades do Primeiro Mundo até as do Terceiro, com diferentes formações históricas -Kingston, ex-colônia britânica; São Paulo, influência lusitana; Buenos Aires ou Cidade do México, espanhola.
Chevigny sempre esteve perto dos grupos marginalizados nos Estados Unidos -e daí a sua sensibilidade para a violência policial. Ele se tornou herói dos músicos negros de Nova York, limitados a tocar nos bares da cidade por regulamentos que escondiam inspiração racista. Entrou na Justiça com pedidos de anulação da proibição, baseado no direito de expressão. Mais tarde, fez do Mississipi cenário de sua atividade, na tentativa de aumentar o eleitorado negro.
Quando se fala, hoje, em direitos humanos nas Américas já não vêm à cabeça os prisioneiros políticos, em sua maioria de classe média -o que vem é gente do tipo Rodney King, cujos maus-tratos por policiais produziram uma rebelião em Los Angeles.
O caso de Rodney ganhou destaque porque ele foi filmado enquanto apanhava. No geral, passa despercebido. O atentado a direitos humanos já não gera a mesma comoção como no tempo dos regimes militares -afinal, a vítima, desta vez, é negra ou pobre. É um problema crescente, atrelado à marginalização estrutural da sociedade.
A vítima entra, portanto, na categoria do "torturável". Chevigny, em seu livro, ao tentar entender os fundamentos da violência oficial, mostra como a polícia reflete o que se imagina que seja a "ordem" -um negro dirigindo um carro luxuoso está fora da ordem e, assim, "merece" ser parado.
Ele vai comparando as cidades, de Los Angeles, passando por Nova York, São Paulo, Kingston, Cidade do México, e vai encontrando enormes divergências nas causas da violência. E mostra que nenhuma causa isoladamente consegue explicar o fenômeno; é uma multiplicidade de razões.
Só a pobreza não explica a violência de uma sociedade. Nova Déli (Índia) é menos violenta do que São Paulo, por exemplo. Aqui e ali, exercem influência em maior ou menor grau o passado escravagista, os antigos regimes ditatoriais (Brasil e Argentina).
Na diversidade, definem-se regras gerais: quanto mais fraco o governo em prevenir a violência e punir abusos, mais a polícia perde legitimidade. E menos é respeitada. Tem-se, assim, um círculo vicioso. Afinal, mais a população vai esperar de suas autoridades um comportamento arbitrário e, como mostram os fenômenos dos linchamentos e justiceiros, vai fazer justiça com as próprias mãos.

Folha - Por que São Paulo entrou no seu livro?
Paul Chevigny - O livro é sobre a violência policial e seus fundamentos sociais. A violência é muito grande em São Paulo se comparada com as outras cidades investigadas. É a mais extrema, especialmente no que se refere à violência policial. Quis entender porque a violência tem, em certos momentos, apoio da sociedade. São Paulo é um caso extremo.
Folha - O que encontrou nas suas viagens a São Paulo?
Chevigny - Desde a minha primeira viagem, em 1987, quando estive lá numa missão do Human Rights Watch, vi que se matavam suspeitos, fugitivos -as execuções eram disseminadas e, muitas vezes, sustentadas ou até estimuladas por superiores. A tortura também, com paus-de-arara em todas as delegacias em São Paulo.
Folha - São Paulo é uma típica cidade de Terceiro Mundo?
Chevigny - Tem características em comum com cidades de Terceiro Mundo. Mas também tem aspectos de Primeiro Mundo. Em muitas coisas se parece com Nova York, por ser um centro econômico, com muita gente apressada nas ruas, a preocupação comercial dominante, pessoas em busca de serviços sociais, a imigração constante. São Paulo resume muitos dos problemas do Terceiro Mundo.
Folha - A partir das suas verificações, quais os motivos da violência urbana? Daria para responsabilizar apenas a pobreza?
Chevigny - A questão é complexa e, na verdade, existe em cada lugar uma múltipla convergência de fatores. Pobreza, de fato, é um elemento importante. Mas a Índia é bem mais pobre que o Brasil e lá a violência é menor. Também é menor no México. Pode-se dizer que existe influência do regime militar, mas a Cidade do México não teve ditadura e tem violência urbana. A pobreza influi, a marginalização provocada pela má distribuição de renda influi, mas é importante verificar se um governo é forte ou não para controlar a arbitrariedade policial ou servir como fonte de prevenção em vez de repressão.
Folha - O que encontrou em São Paulo, por exemplo?
Chevigny - O governo é fraco. É fraco no sentido da manutenção do policiamento nas ruas e, ao mesmo tempo, da capacidade de impedir arbitrariedades. Quando o governo é fraco, a população acaba se sentindo estimulada a fazer justiça com as próprias mãos. E a própria polícia passa a considerar normal a execução, achando que está defendendo a sociedade.
Não vejo um real esforço do governo para conter a arbitrariedade policial. Encontrei isso em todos os lugares em que há vigilância ou linchamentos. A população faz justiça com suas próprias mãos, e o governo de fato não se incomoda. A polícia reage em sintonia com o sentimento de vingança popular. No livro, tento mostrar que a polícia não apenas tenta manter a ordem, mas reproduzir a ordem. E isso se vê em São Paulo, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires, ou seja, os suspeitos são, em geral, os marginalizados. Tortura-se aquele que é torturável socialmente.
Folha - Qual é a ligação entre a fraqueza da polícia e a brutalidade?
Chevigny - Quando o Estado não é presente, a população passa a exigir um comportamento cada vez mais violento da polícia, o que, muitas vezes, justifica o extermínio. É criado um círculo vicioso.
Folha - Como quebrar o ciclo de violência?
Chevigny - Não é fácil. A sociedade tem de reagir à mudança, mas a reforma pode partir da própria instituição. Em São Paulo, depois do Carandiru, a matança da PM caiu, o que demonstra empenho. Mas, depois, voltou a subir.
Folha - Considerando o número de assassinatos, o que se pode dizer? São Paulo é mais violenta?
Chevigny - É terrível, muito mais do que Nova York e Los Angeles juntas. Em 1992, houve 25 mortes em cada uma das duas cidades, 50 nas duas. Nada comparável a São Paulo, onde os números são astronômicos. Em 92, a cidade teve mais de 1.000 mortes.
Folha - O que o caso O.J. Simpson, que produziu ataques contra a polícia de Los Angeles, acusada de falsear provas, pode ensinar alguma coisa aos brasileiros?
Chevigny - Quando a polícia é corrupta ou arbitrária, ela perde a legitimidade. O governo forte, aquele que faz cumprir a lei, tende a produzir uma sociedade mais pacífica. Não há vantagem em a polícia matar mais. Quanto mais assassinatos, maior a reação e menor a legitimidade.
Folha - Como é a polícia de Nova York?
Chevigny - Há nela muita brutalidade e mesmo arbitrariedade. Há muita mentira, fabricação de provas, ele jogam drogas no carro, falsificam impressões digitais. Muitos policiais foram acusados e punidos por isso. Muitos querem resolver problemas e ganhar pontos. No fundo, eles se sentem no dever de julgar se alguém é culpado ou não. Como em São Paulo, muitos se sentem protegendo a sociedade. Mas não se chega ao ponto que chegou São Paulo, onde as execuções tornaram-se rotina. Muitos dos suspeitos, lá como aqui, são negros.
Folha - Quais as diferenças entre as sociedades brasileira e americana?
Chevigny - Os Estados Unidos são mais organizados, embora as entidades privadas de mobilização estejam em decadência, o que é um dos mais preocupantes fenômenos contemporâneos. Mas é verdade que há muitas organizações de negros, hispânicos, que pressionam o governo para ser menos violento. A violência é maior contra os marginalizados: hispânicos, negros, homossexuais e, em certos casos, asiáticos. A polícia, como já disse, tende a refletir os mesmos preconceitos contra os marginalizados.
Folha - Quem julga o homicídio do policial?
Chevigny - É a Justiça comum e a polícia. Se policiais matam alguém, serão julgados pela corte. Em Los Angeles, a polícia mata mais do que em qualquer cidade americana e por muito tempo nenhum policial foi processado. Por isso, há tanto protesto, o que explica em parte a reação ao caso O.J. Simpson. No Brasil, como se sabe, há uma justificável pressão para que os policiais não sejam julgados apenas por seus colegas.
Folha - Por que caiu o número de assassinatos em Nova York?
Chevigny - Ninguém sabe exatamente o por quê. Fala-se na mudança da população, que está mais velha. Fala-se que a polícia está mais ativa, fala-se que o crack está saindo de cena e que a polícia está presente. Todas essas causas têm, certamente, algum efeito. Não se sabe em que medida cada uma afeta a redução da violência. O fato é que a punição está maior, mais gente está indo para a cadeia. Um milhão de pessoas está na cadeia nos Estados Unidos.
Folha - A violência é uma questão estrutural nas grandes cidades, já que a marginalização parece fazer parte de uma sociedade tecnológica?
Chevigny - Gostaria de dizer que eu não sei, ou espero que isso não aconteça. O fato é que a marginalidade está se tornando estrutural porque as pessoas não conseguem se manter no campo, a televisão os estimula a consumir, as cidades não oferecem tantas oportunidades, estão acabando os bons empregos com garantias sociais. Os cortes de benefícios sociais ajudam a colocar mais gente na pobreza.

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O livro "Edge of the Knife" (Fio da Navalha), a ser lançado em novembro pela editora The New Press pode ser encomendado à Livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, Conjunto Nacional, tel. 011/285-4033, São Paulo)

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