São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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Um Chaplin imprevisível do futebol

JUCA KFOURI
COLUNISTA DA FOLHA

Entre as lendas e as verdades que envolvem o jogador de futebol Mané Garrincha, fico só com o que vi, ainda menino, ninguém me contou.
Certa vez, por sinal, Arnaldo Jabor disse que entre Pelé e Garrincha, o brasileiro ficava com o segundo, porque gostamos mais dos derrotados que dos vitoriosos. Se a conclusão é sábia, como costumam ser sábias as conclusões de Jabor, a premissa é discutível. Porque se, de fato, Garrincha perdeu para a vida, dentro de campo, com a bola nos pés, foi um dos grandes vitoriosos da história do futebol mundial -por mais, aliás, que o mundo estranhamente não o reverencie como tal.
Tento resistir à tentação de comparar Mané e Pelé. O Rei é o Rei e só os "outristas", genial criação de Luís Fernando Veríssimo para definir aquele tipo de gente que nunca admite o óbvio, insistem em inventar alguém que tenha sido melhor que ele. ("Ah, tem o irmão de um colega meu de ginásio que batia uma bola muito mais redonda que a dele...").
Mas não resisto. Garrincha tinha uma característica que nem Pelé teve. Enquanto Pelé deixava as platéias boquiabertas, surpresas, admiradas por onde passava, Garrincha fazia o estádio rir, gargalhar até. Daí ser a "Alegria do Povo". Garrincha era Chaplin, já se disse, Pelé era Spielberg -talvez uma impropriedade que Jabor não cometeria.
E Garrincha foi capaz de uma façanha que só Diego Maradona, 24 anos depois, igualou. Garrincha ganhou sozinho uma Copa do Mundo, a de 1962, no Chile. Então, com Pelé fora de combate a partir do segundo jogo, vítima de uma traiçoeira distensão na virilha que doeu no Brasil inteiro, Mané tomou todas as dores e revelou aptidões até então desconhecidas. Comandou um timaço já envelhecido e fez de tudo bastante. Marcou gol de falta, de pé esquerdo, de cabeça. Serviu Amarildo, serviu Vavá, aí sim, como já fizera em 1958 na conquista da Suécia. Foi o homem esquadra, ele que estava acostumado a se divertir solitário pela faixa direita do gramado. No Chile, não. Jogou pela direita, demais, pela esquerda, o suficiente, pelo meio, como um mestre. Tomou para si a tarefa sobre-humana de levar o Brasil ao bicampeonato. Já que o super-homem não estava, Carlitos faria os dois papéis. E como fez!
Fez mais, muito mais. Romantismo à parte, porque foi contemporâneo da arte, mas também do pragmatismo eficaz de Pelé, Garrincha perdoava seus marcadores, por mais violentos que fossem. Se o Rei, em legítima defesa, chegou a tirar alguns de campo devidamente quebrados, Garrincha os consolava.
Houve um Botafogo e Santos, no Pacaembu, particularmente inesquecível. Garrincha pegava a bola e partia para cima do lateral Dalmo. Ia caminhando, bola presa aos pés. E Dalmo ia recuando, perplexo, quase paralisado de pavor. Quando Garrincha ensaiava o corte, que todos sabiam que daria e ninguém conseguia neutralizar, Dalmo não tinha dúvida: soltava o sarrafo, e Garrincha desabava no gramado. Tantas vezes a cena se repetiu que o árbitro foi obrigado a expulsar o santista. Já no caminho para o vestiário, Dalmo sentiu uma mão em seu ombro. A mão de Garrincha, que havia se desvencilhado do massagista, levantado e acompanhado o zagueiro até o primeiro degrau da escadaria que o conduziria para o chuveiro mais cedo, ainda no primeiro tempo. Era como se repetisse a famosa frase de Nelson Rodrigues, outro gênio brasileiro brilhantemente biografado por Ruy Castro. "Me perdoe por me traíres".
Na constelação dos deuses do futebol, e, insisto, por mais que estranhamente não haja tal reconhecimento fora do Brasil, dois jogadores são únicos, inigualáveis, incomparáveis. Pelé e Mané, Mané e Pelé. E olha que não faltam raridades nessa constelação, de Domingos da Guia a Nílton Santos, de Friedenreich a Maradona, de Leônidas da Silva a Rivelino, de Didi a Cruyff, de Beckembauer a Falcão, de Tostão a Gérson e bote foras de série nisso.
Finalmente, mais uma historinha, dessas que ninguém contou, que eu vi. O Brasil acompanhou a Copa de 1962 ainda pelo rádio e, um, dois dias depois de cada jogo, o teipe chegava de avião e era mostrado na TV. Na partida contra a Espanha, a primeira sem Pelé, o Brasil perdia já no segundo tempo por 1 a 0 e seria eliminado nas oitavas-de-final. Garrincha recebe na direita e dribla uma vez seu marcador. Espera que ele volte e dribla de novo. O locutor se desespera. "O Garrincha não passa a bola!". Mais uma finta, agora chega um segundo marcador que também é driblado. O locutor vai à loucura. "Mas o Brasil está perdendo, o Garrincha prende demais a bola, o que ele quer?!".
Garrincha começa a última sessão de dribles, se livra dos dois marcadores e centra... E o locutor, com voz de choro, desesperado, irritação indisfarçável. "O Garrincha, o Garrincha... Goooolllll. Gooollll do Brasil. Amarildo!!!!".
Garincha driblara, driblara, driblara e driblara um pouco mais. Esperava alguém entrar na grande área. Aí, Amarildo chegou...

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