São Paulo, domingo, 22 de outubro de 1995
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O demônio de Álvares de Azevedo

DECIO DE ALMEIDA PRADO

O "Primeiro Episódio" de "Macário" dramatiza, em suma, os conflitos inerentes à adolescência. Há muitos motivos para descrer, seja na religião, seja em filosofia. Mas como fugir, nesse caso, à atração pelo abismo, à sensação niilista que todo real tem qualquer coisa de irreal? Parece ser esse o diálogo mais fundo que se trava entre Satã e Macário e que se pode sintetizar em duas falas, arrancadas do seu contexto, mas correspondentes entre si:
"Satã - É uma bela coisa o vapor de um charuto! E demais, o que é tudo no mundo se não vapor?
"Macário - Duvido sempre. Descreio às vezes. (...) O amor, a glória, a virgindade, tudo é uma ilusão."
O "Segundo Episódio" mais expande do que continua o "Primeiro". A preocupação com o espaço e o tempo, já diminuta, desaparece de vez, juntamente com o delineamento do enredo. Estamos agora na Itália -não a Itália histórica, mas o país sonhado pelas fantasias românticas. Não lhe faltam, inclusive, resquícios tropicais sobrados do "Primeiro Episódio". Penseroso, personagem novo, ao cismar à noite (o dia seria menos romântico), ouve "a toada monótona da vida" e a "cantilena do sertanejo", sentindo a alma "embalada nas redes moles do sono. Juraríamos estar ainda no Brasil -porém o mais sábio é deixar de lado a idéia de unidade de lugar, bem como a de qualquer conexão estreita entre peça e realidade próxima. A Europa e a América, de resto, não tardarão a se irmanar, na orgia que Georgio pretende dar: "Teremos os vinhos da Espanha, as pálidas voluptuosas da Itália e as americanas morenas".
A lei estética agora reinante, tipicamente romântica, é a do fragmento, do inacabado, da obra aberta. A ação, na tênue medida em que existe, divide-se em dez quadros, de títulos apropriadamente pouco determinados: "Uma Sala", "A Porta de uma Taverna", "Uma Rua". Deslizam pela cena algumas personagens (Dr. Larius, Huberto, que só diz uma frase, Georgio e David, apenas mencionados) cuja ligação com Macário, ou com Penseroso, ignoramos. Este, contudo, merece um tratamento especial. Um dos quadros decorre em seus aposentos e páginas do seu diário são transcritas, tal como estão no papel, escapando por esse lado ao teatro, que só admite a palavra oral.
Resumir este "Segundo Episódio", ele mesmo altamente episódico, seria impossível. Mas o que se apresenta agora no texto não deixa de ter uma certa relação com o "Primeiro Episódio". Volta, por exemplo, a relação mãe-filho, associada à morte e talvez ao sexo. (Mário de Andrade acha significativo que Álvares de Azevedo haja desejado morrer na cama da mãe). Esta mãe, a da peça, considerada de início por Macário uma "Messalina de cabelos brancos", na verdade acalenta no colo o cadáver do filho afogado, que ela procura reanimar com o calor do seu corpo: "Quando eu o embalava no meu seio, ele às vezes empalidecia... que parecia um morto, tanto era pálido e frio!... Meu filho! Hei de aquentá-lo com meus beiços, com meu corpo...."
Macário e Penseroso também são frágeis, tendendo para o suicídio e para a morte. O livro de poesias que Macário dá para Penseroso ler parece a este "um copo de veneno". Duas concepções diversas do romantismo irão se defrontar, por intermédio dos dois amigos, unidos pela inquietação literária, mas opostos quanto às convicções estéticas. Uma, a de Penseroso, baseia-se na crença de que o Brasil, por ser parte da América, representa para a Europa a descoberta de um "admirável mundo novo" (digamos assim), a começar pela vegetação luxuriante. "Esse Americano -pergunta retoricamente Penseroso ao autor do livro, cujo nome não sabemos- não sente que ele é filho de uma nação nova, não a sente (...) cheia de sangue, de mocidade e verdor? Não se lembra que os seus arvoredos gigantescos, seus oceanos escumosos, os seus rios, as suas cataratas, que tudo lá é grande e sublime?" É o tema da magnificência da natureza tropical, que José de Alencar logo desenvolverá. A este romantismo algo rotineiro contrapõe-se outro, mais interessado pelas dúvidas do homem que pela riqueza da terra, mais próximo do negativismo de Satã, que assim justifica a sua presença em cena, que das verdades reveladas por Deus. É o que, pouco mais ou menos, replica Macário a Penseroso: "E dize-me se no riso amargo daquele descrido, se na ironia que lhe cresta os beiços, não há poesia como na cabeça convulsa de Laocoonte".
A discussão é interessante, por dizer respeito ao futuro da literatura brasileira, que, de maneira geral, preferiu o caminho indicado por Penseroso. Mas a peça, infelizmente, levada pela eloquência discursiva, pelas posições teóricas desligadas de qualquer contexto humano, descamba aí no puro "dialogismo". Por trás das palavras sonorosas não se desenham conflitos dramáticos imediatos. A controvérsia, de natureza literária, caberia perfeitamente num ensaio sobre as duas faces do romantismo, a otimista e a pessimista, a nacionalista e a universalizante, a cristã e a demoníaca.
De fato, boa parte do texto repete -ou antecipa, se a peça for anterior- o que Álvares de Azevedo desenvolveu sobre a descrença em seus escritos teóricos. Mas não é a repetição que se estranha e sim a confusão entre o plano da ficção teatral, encarnado em pessoas, e o plano do estudo especulativo alicerçado em conceitos, idéias abstratas. Álvares de Azevedo sentiu a diferença, procurando dar às suas palavras um alto teor emotivo. Mas cai, então, na ênfase, mal das academias de direito nacionais.
A verdade é que toda a produção do poeta brasileiro não só embebe-se como às vezes embebeda-se de arte e de literatura. Não surpreende, pois, que no espaço restrito deste "Segundo Episódio" entrem tantas citações e de vários gêneros: de personagens (Romeu, Julieta, Falstaff, Hamlet, Fausto, D. Juan, Quasímodo); de músicos (Mozart, Beethoven, Paganini); de pintores (Michelangelo, Rafael, Rubens, Rembrandt); de filósofos (Demócrito, Pirron, Diógenes); e, sobretudo, de escritores, nomeados na ordem em que surgem: Petrarca, Chateaubriand, Goethe, Byron, Thomas Moore, Lamartine, Dante, George Sand, Shakespeare, Sainte-Beuve, Bocage, Chatterton. Com esta carga de erudição juvenil não é apenas o teatro que submerge, é a própria prosa que, tornando-se dissertativa, perde a elegância e a concisão poética mantidas no "Primeiro Episódio".
Mas essa espessa camada literária não constitui o fundamento da peça. Por baixo dela encontramos duas questões de grande relevância tanto para o homem como para o artista. A primeira refere-se à dúvida religiosa, que se exprime claramente em algumas frases trocadas entre os dois rapazes.
"Penseroso - Não: não é o filosofismo que revela Deus. A razão do homem é incerta como a chama desta lâmpada: não a excites muito, que ela se apagará.
Macário - Só restam dois caminhos àquele que não crê nas utopias do filósofo. O dogmatismo e o ceticismo.
Penseroso - Eu creio porque creio. Sinto e não raciocino.
Macário - (...) às vezes creio, espero: ajoelho-me banhado em pranto, e oro; outras vezes não creio e sinto o mundo objetivo vazio como um túmulo".
Eles pendem para lados diferentes, para a crença ou para a descrença, como que por opção, mas possuem em comum a dificuldade de unir sentimento e razão, religião e filosofia, em torno de uma mesma certeza absoluta.
O outro problema é o do suicídio, que Albert Camus considerou o primeiro entre todos para o homem: a vida vale ou não vale a pena de ser vivida? Pode parecer que ao abordá-lo ainda não nos afastamos da literatura, tendo em vista o exemplo dado por Werther, na novela de Goethe, e por Chatterton, poeta inglês que se matou aos 18 anos no século 18 e que Alfred Vigny reviveu no palco em pleno romantismo. Isso sem contar que Álvares de Azevedo interpretava a existência crapulosa de Bocage como uma espécie de suicídio moral imposto ao poeta pela sociedade.
Mas a questão afigura-se menos remota, de âmbito menos exclusivamente literário, se acrescentarmos que um colega de Álvares de Azevedo na academia de direito, Feliciano Coelho Duarte, suicidou-se em 1849 e que o autor de "Mácario" discursou no seu enterro, em termos que evocam, como notou Raimundo Magalhães Junior, o "ser ou não ser" do monólogo famoso do "Hamlet" (4). Vida romântica e ficção romântica não andavam nunca muito distanciadas.
De qualquer modo, a preocupação com a morte iminente é mais um traço que aproxima um amigo do outro. Quando se encontram pela primeira vez é Macário que manifesta esse desejo ou essa apreensão: "Vou morrer". "Eu to juro pela alma de minha mãe, vou morrer". Mas no fim é Penseroso quem se envenena, num desfecho que mais abre do que fecha a nossa perplexidade. Afinal, ele é o crente, em religião, e o otimista, quanto à literatura, acreditando que a poesia marcada pelo desespero vai de encontro ao "rodar do carro do século""" -ou seja, do progressista século 19. No entanto, é ele que se suicida. Alega, é certo, uma razão poderosa para isso: a sua noiva, a Italiana, não o ama. Mas, curiosamente, não é o que ela afirma, de modo categórico: "Por quem se espera no altar? É por mim? Não, Penseroso, é pela vontade do teu pai... Não te dei minha alma, assim como te darei meu corpo?" A conclusão, se há alguma, é que Álvares de Azevedo achou conveniente que no decorrer da peça alguém morresse e delegou essa função a Penseroso. Não se deve, frente a peças livres como esta, escrita ao correr do pensamento, exigir mais lógica do que aquela desejada pelo autor.
A partida de Penseroso enseja a última entrada de Satã, para concluir a peça. Nesse sentido, a substituição do par Macário-Satã, do "Primeiro Episódio", pelo par Macário-Penseroso, dominante no "Segundo Episódio", se oferece vantagens evidentes para a discussão poética, representa retardamento em relação ao andamento do enredo, que tem na figura do diabo a sua mola propulsora. Ele e Macário já haviam se defrontado por algumas vezes neste episódio, porém mais ocasionalmente. A conversa entre os dois adquire, aliás, um tom algo dúbio do ponto de vista sexual, já que o mais velho, Satã, protege o mais novo com o carinho que se costuma dispensar unicamente à criança ou à mulher.
Agora, para encerrar o espetáculo, Satã retoma o seu papel de mentor de Macário, reinvindicando os seus direitos sobre ele: "Abrir a alma ao desespero é dá-la a Satã. Tu és meu. Marquei-te na fronte com o meu dedo". O trabalho de desconstrução moral do poeta irá continuar, pelo acesso ao vício, ao interdito, cujo símbolo maior é a orgia, o desregramento do corpo e do espírito. Os dois caminham para lá. Mas não chegarão a entrar "na sala fumacenta", onde "estão sentados cinco homens ébrios". Ficam espiando através da janela. A fala conclusiva cabe a Macário: "Cala-te. Ouçamos". Nada terminou, portanto. O suposto fim é de fato um começo.
As coisas estavam neste pé, como as deixou o autor, quando Antonio Candido, em estudo já mencionado, defendeu uma hipótese, "talvez audaciosa: "Noites na Taverna" seria a continuação pura e simples de "Macário" (5). Passaríamos, entre uma e outra obra, do lado de fora da taverna, onde permanecem Macário e Satã, para o lado de dentro, em que "os cinco homens ébrios" começam a falar. Não vamos repetir aqui o raciocínio do crítico, bem fundamentado. Basta dizer que, em nossa opinião, trata-se de um desses achados interpretativos que, uma vez feitos, parecem óbvios.
A matéria literária de "Noites na Taverna", desenvolvida sob a forma de monólogos -ou confissões- que às vezes se cruzam, não cabe no capítulo do fantástico, conforme a classificação de Todorov, por não sair do natural para o sobrenatural. As aventuras pessoais narradas permanecem na categoria do estranho ou do insólito (o que não sói acontecer, na velha e bela frase portuguesa), tendo este caráter menos pelos incidentes tomados um a um do que por seu acúmulo na vida de uma mesma pessoa, como se, cometido por esta o primeiro delito, rompido o que chamaríamos abusivamente de contrato social, os outros se seguissem necessariamente. Ou como se cada participante desta orgia verbal só encontrasse prazer na transgressão de alguma lei ou princípio moral.
Nesses verdadeiros exercícios de libertinagem, nesses relatos de abusos e de traições à boa fé alheia, a sexualidade, não sendo agente exclusivo, atua como força preponderante. O que nos traz à memória uma proposição de Todorov, tirada da sua longa convivência com o fantástico: "O desejo, como tentação sensual, encontra a sua encarnação em algumas figuras mais frequentes do mundo sobrenatural, em particular na do diabo. Pode-se dizer, simplificando, que o diabo não é senão uma palavra para designar a libido" (6).
Analisada sob essa luz, diríamos que "Macário", se dispensarmos o lado improvisador e fragmentário, próprio antes do poema dramático que da peça de teatro, apóia-se estruturalmente sobre os seus dois antagonistas (se é possível denominá-los assim). Penseroso coloca o problema do suicídio e permite que Macário discuta a validade da poesia julgada doentia, enquanto Satã, personagem capital, presente na primeira e na última cena da peça, após submetê-lo à prova do pesadelo, abre para o jovem poeta a porta da sexualidade, da sexualidade nua e crua, sem peias, fazendo-o ingressar naquele território distante, defeso, mas habitado, na vida e na literatura, por poetas queridos, como Bocage e Byron.
Macário -ou da crença e da descrença. Uma personagem de Dostoievski, alguns anos depois, concluiria que se Deus não existe tudo é permitido. Talvez fosse esse o demônio que estava atormentando os 20 anos de Álvares de Azevedo (e de Macário).

NOTAS
(1) "Teatro e Narrativa em Prosa de Álvares de Azevedo", in Azevedo A., "Macário". Unicamp, Campinas, 1982, pág. V. Todas as citações da peça decorrem desta edição, que segue a de Homero Pires.
(2) Todorov, T. "Introdução à Literatura Fantástica". Perspectiva, São Paulo, 1973, pág. 31.
(3) Andrade, M. "Aspectos da Literatura Brasileira". Martins, São Paulo, s/d, pág. 204.
(4) Magalhães Junior, R. "Poesia e Vida de Álvares de Azevedo". Editora das Américas, São Paulo, 1962, págs. 158-168. O autor supõe que Feliciano Coelho Duarte seja o modelo de Penseroso.
(5) Antonio Candido, ob. cit. págs. IX-XII.
(6) Todorov, T. ob. cit. págs. 136-137.

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