São Paulo, segunda-feira, 23 de outubro de 1995
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A arte de flexibilizar

JOSUÉ MACHADO

Teria mesmo o presidente Fernando Henrique Cardoso dito que foi ele o divulgador da palavra "flexibilizar" na pujante economia brasileira? Se disse, enganou-se. Distração ou menas verdade, como diria o Lula.
Nos inesquecíveis governos de Sarney e do Grande Marajá, a moçada que compunha a equipe econômica já veio com essa em relação a preços: flexibilizar, flexibilização, flexibilidade, Bresser Pereira, Maílson da Nóbrega, Tia Zélia & Cia. utilizavam flexibilizar como sinônimo inovador e eufêmico de aumentar, elevar. Os preços, claro.
Agora, raros são os discursos ou declarações sobre reforma administrativa, fiscal, previdenciária ou qualquer outra em que os autores não saquem rápido o tijolaço flexibilizar ou o paralelepípedo flexibilização. Eles gostam desses palavrões de sentido vago e os metem em qualquer buraco cinza para dizer coisa nenhuma ou ser propositadamente obscuros, filhos da noite que são.
E flexibilizar, se os dicionários não estão furados, era, até então, tornar flexível, elástico, maleável. Flexível é o que se pode dobrar ou curvar, arquear. E flexibilidade, capacidade de dobrar-se e até docilidade; brandura, compreensão, complacência.
Flexibilidade e flexível correspondem à idéia de movimentos em qualquer direção -não só para cima, como no começo interpretaram os gênios da economia. É um movimento de vaivém, em todos os sentidos do melhor, que é ótimo, ao pior, indescritível. O pé de bambu é flexível em qualquer direção que tome o vento, e não como os preços, que as rajadas da economia sempre tão bem-dirigida não se cansam de elevar. Basta ver que os preços de alguns produtos e serviços passaram de CR$ 1.000 a R$ 1 sem escala. O conserto de um furo de pneu que custava CR$ 5.000 (pouco mais de US$ 2) agora custa de R$ 5 a R$ 8 (de US$ 6 a US$ 8). Um exemplo entre centenas. Pura flexibilização. E o preço da energia elétrica em breve será flexibilizado.
O fato é que por extensão do movimento de vaivém, agora se entende que flexibilizar qualquer noção ou princípio significa atenuar seu sentido, diluir seus limites, amolecer seus fundamentos, espanar-lhe a rosquinha.
Quando o ministro Bresser Pereira, por exemplo, fala em flexibilização da estabilidade dos servidores públicos, está usando um eufemismo pouco sutil para significar a supressão, a extinção dela, sabemos todos, o que será bom para uns e mau para outros.
É possível, no entanto, que FHC tenha dado a flexibilidade/flexibilização o sentido exato quando pediu o abrandamento das regras bancárias para resolver o problema dos produtores rurais, entre os quais há necessitados verdadeiros. Se o fez, fê-lo bem. Flexibilização é isso.
Na última vez em que a Madre Superiora ouviu essa história de flexibilizar/flexibilização, no anúncio de que "o monopólio do petróleo foi flexibilizado", pensou dentro de seus hábitos engomados:
"Se não fosse pecado praguejar eu diria que 'flexibilizar é o cacete!"'

POSTE ESCRITO
Sem sair do campo religioso, é preciso fazer uma correção. No respeitável tema "Teologia Federal", tratado nesta coluna em 16/10/95, o computador sabotante escreveu com um trema indevido a palavra alemã "Bundes", que significa aliança e acordo, entre outras coisas. E repetiu a mancada em "Bundestheologie" (Teologia da Aliança) e "Bundesrepublik Deutschland" (República Federal da Alemanha).
O ombudsman da Folha, Marcelo Leite, que lê Max Weber e ouve, sim, ouve Schõnberg, com trema, no original, tremeu nas bases. Imperdoável. É o caso de flexibilizar os tremas intrometidos.

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