São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 1995
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Brincando com fogo

LUÍS PAULO ROSENBERG

Parece incrível, mas 18 meses após a divulgação dos fundamentos do Plano Real ainda persiste uma incompreensão generalizada sobre as condições vitais para a continuidade da estabilização dos preços.
O mais grave é que nunca antes havia ocorrido no Brasil manifestação tão cristalina da sociedade apoiando uma iniciativa governamental; após eleger presidente, em primeiro turno, um candidato reconhecidamente ruim de voto, a constância do custo da cesta básica continua proporcionando ao atual governo mais de 50% de apoio nas pesquisas de opinião pública.
O político, portanto, que se colocar na trilha do Real, obstaculizando sua evolução, será atropelado pela motoniveladora do voto popular já nas eleições municipais do próximo ano.
Voltemos, portanto, ao bê-á-bá da luta contra a inflação. O plano só existe, só sobrevive, só tem sentido econômico com a âncora cambial. Quebrando a inércia inflacionária, colocando milhares de competidores estrangeiros vigiando a eficiência de cada empresário no Brasil, a manutenção de uma taxa de câmbio praticamente constante impede a subida de preços domésticos de tudo aquilo que é transacionado internacionalmente.
Muito bem, o que é necessário para que se imponha uma âncora cambial? Um decreto? Nem pensar. A rigidez cambial só se viabiliza pela compra e venda de divisas pelo Banco Central no mercado, à taxa almejada. Vale dizer, não é apenas um ato de vontade, mas a expressão concreta do compromisso governamental com a âncora cambial, que só é possível se o país tiver reservas internacionais abundantes para atochar dólares em todos os que duvidarem da sua condição de sustentar o câmbio.
Quais as precondições para a introdução de um programa de âncora cambial? Equilíbrio fiscal, que tira o setor público do time dos que pressionam a demanda agregada, e juros recompensadores para os que diferirem consumo.
O Real preenche todos esses requisitos: apesar do escorregão inicial da administração da taxa de câmbio, estamos de volta aos níveis praticados no início do plano e ninguém mais duvida de que o governo quer e pode manter a taxa por vários meses; temos tido equilíbrio fiscal, ainda que volátil e desfazendo-se; certamente, temos juros reais positivos (positivos até demais, na verdade), completando o conjunto que viabiliza o início de um plano de estabilização. Por isso, a inflação está em queda desde o lançamento do plano.
Até aqui, tudo bem. A questão que muitos se negam a enfrentar é: o que é necessário para assegurar que o plano vai ter continuidade?
A resposta é simples: basta que seja viável sustentar a taxa de câmbio nos patamares atuais, pois, se a taxa de câmbio acompanhar a inflação, por menor que ela seja, assim farão salários, preços públicos, juros, aluguéis e, "voilá", a reindexação estará de volta, perpetuando pressões inflacionárias.
Como se faz para viabilizar uma âncora cambial? Há dois caminhos: o mexicano, que manteve artificialmente valorizada sua moeda por anos, exportando cada vez menos do que importava, mas encontrando gananciosos dispostos a financiar seu déficit comercial, até o momento do desmascaramento, quando quebrou. Nessa rota estávamos no primeiro semestre deste ano, com o câmbio perto de R$ 0,80 por dólar.
O outro caminho, que devemos seguir, é o argentino: o país empenha-se numa cruzada para reduzir custos de produção do setor privado, o que torna desnecessário desvalorizar o câmbio, e o produtor doméstico continua viável, porque caem os custos financeiro, tributário, trabalhista, portuário etc. Mantêm-se a competitividade e a saúde das contas externas sem precisarmos de desvalorização.
Pois bem, nada está sendo feito no Brasil nesse sentido. Ao contrário, a lista dos que têm contribuído para a permanência da cultura inflacionária no país, descuidando da redução do custo do empresário nacional, é tão longa que se corre o risco de omissões imperdoáveis: os prefeitos, quando aumentaram as tarifas de ônibus em mais de 30%; os governadores, que reajustaram água, esgoto e metrô, com base na inflação do passado; o Ministério da Fazenda, quando encarece derivados de petróleo; o BC, quando acredita que juros hemorróidicos podem ser mantidos por anos, independentemente de destroçarem a saúde financeira das empresas; o Ministério da Indústria e Comércio, quando eleva alíquotas de importação, pratica a operação-gaveta em importações de insumos e cogita gerar subsídios para ressuscitar o carro a álcool; a Secretaria de Planejamento, quando gasta tudo que arrecada, em vez de procurar cortar gastos para reduzir a carga tributária; o presidente, quando não envia ao Congresso propostas radicais de reforma tributária e previdenciária.
Todas essas ações podem ser reduzidas a um denominador comum: são oportunidades perdidas de tornar mais barato o custo de produzir no Brasil. Em resumo, se quisermos estar sintonizados com o clamor do povo que exige o fim da inflação, deveríamos submeter qualquer iniciativa do governo ao seguinte teste, antes de apoiá-la: estaremos aumentando ou reduzindo o custo de produzir no Brasil?
Nesta semana, demos uma no cravo, outra na ferradura. De positivo, a firmeza do presidente exigindo que lhe seja devolvido o poder de demitir os inúteis do funcionalismo público e, assim, reduzir o ônus do setor público sobre a sociedade. Já o desalento vem da decisão do Senado de aprovar, em primeira votação, o demoníaco imposto do dr. Jatene, que extrairia cerca de R$ 6 bilhões do setor privado para serem gastos pelo setor público.
Melhorar a qualidade do atendimento público na Saúde, por meio de redução de outros gastos e eliminação do desperdício, é coisa de médico. Criar um imposto a mais, sacrificando empresas e famílias e comprometendo os fundamentos do Real, é coisa de monstro.

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