São Paulo, terça-feira, 24 de outubro de 1995
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Clientelistas e corporativos se unem

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Foi um "ahh!" de deslumbramento quando o Lula entrou no salão verde do Congresso, de braço dado com o Prisco Vianna. O coro de funcionários públicos abriu passagem, com vivas e palmas. Prisco estava encantado, sem ar, ao lado daquele homem que tinha sido a novidade ideológica dos anos 70.
"A reforma administrativa não passará!," segredou-lhe Lula. Prisco se sentiu ao lado de uma "Passionária barbuda". "No pasarán!, replicou, mostrando cultura. Um grupo de funcionários "tietes" dançou na frente deles:
"PT - socialista!"
Ombro a ombro com a bancada ruralista!. Outro grupo cantou:
"Lula, Prisco e Cunha Lima,
todos unidos pela alma nordestina!."
Lula estava emocionado em sua nova fase de aliança com os maiores reacionários do país. Sentia-se "pós-moderno", global, flertando com o mal.
Trancaram-se num gabinete. Pelas frestas, viam como num teatro, as personagens que iam votar contra a reforma administrativa. O coro de "barnabés" dançava e cantava, discretamente dirigidos pelos "marajás", assim como os bispos do Edir Macedo controlam seus pastores mal pagos. E contra este pano de fundo passavam os líderes do bloqueio à reforma. Passou o Roberto Magalhães, aristocrata pernambucano, jurista que sorria aliviado da carga de sisudez que sempre ostentara. "Preciso de meus cabos eleitorais na eleição para prefeito! São todos funcionários!" Esta confissão clientelista lhe dera um alívio infinito. A seu lado se pavoneava Regis de Oliveira, magistrado, falando em "cláusulas petreas" da Constituição. "Bobagem, Regis, 'cláusula pétrea' o cacete, o negócio são os eleitores pétreos! Temos de garantir seus empregos"! E riram unidos na mesma gargalhada.
"Que bom, o fim das ideologias!", sussurou Prisco a Lula. "Temos agora o alívio da verdade! Veja como Magalhães está feliz. Esta é sua face real; clientelista. O clientelismo é uma doce tradição brasileira. Desde o fim da escravidão, os "favores são a moeda de troca da política. Nossos cabos eleitorais são nossas famílias. Veja a alegria do PMDB, com o fim daquele papo de "vítimas da ditadura. A eleição de Paes de Andrade foi a liberdade. Agora quem manda é a república da Paraíba, pátria dos Cunha Lima!..."
"Tenho muito a aprender com vocês", disse Lula emocionado.
"Claro", berrou Prisco, "ideologia não enche mais barriga de ninguém. Ideais só servem para vestir interesses pessoais! Olha ali o José Clerot passando (com seu perfil de estátua o paraibano desfilava com Vicente Cascione); eles fingem lutar pela integridade da Constituição. Suas idéias constitucionalistas são capas falsas. São os "'águias de Haia' da caa-tinga!"
"Os carcarás de Haia...", arriscou Lula.
"Oh Lula... você tem 'verve'! Você é um Jô, um Bob Hope!," bajulou Prisco, se torcendo de riso. "Isto é mais engraçado que o Bonifácio de Andrade e o Régis de Oliveira falando em 'direitos sagrados', para defender o empreguinho vitalício dos magistrados... Ai, Lula, você é um Chico Anísio..."
Lula se animou: "A esquerda precisa..."
"Que esquerda, cortou Prisco. Nossa luta é entre o velho e o novo. Nós juntos, defendemos as puras tradições de 400 anos! Nós somos a bela escultura feita de palha e barro, nós somos o melado dos pleitos, a calda doce dos conchavos, a poética dos currais, Lula! É nosso mundo agrário! Precisamos muito de você, Lula!"
"Como assim?"
"Você tem fama de Robin Hood, você é sagrado, você nos empresta dignidade, Lula!" Lula engasgou, rubro de modéstia.
"Estamos cansados de ser xingados de 'fisiológicos'", continuou Prisco, "agora queremos ser 'ideológicos'! Vocês têm o Milton Temmer; veja como ele consegue dar uma roupa de racionalidade à sua obsessão arcaica!... Precisamos de gente assim! Veja o Marcelo Deda, aquele pavão do Sergipe, ele tem a retórica que doura a ignorância! Você e o seu PT têm o 'marketing' dos justos! Assim como você precisa de nossa velhacaria, nós precisamos de sua pureza!"
"Que pureza!?", protestou Lula dando um pulo. "Sou pragmático!" O bigode de prisco tremeu. "Não pense que somos uns românticos! Quem votou contra o parlamentarismo?
Quem jamais atacou um 'ruralista das cenouras'? O PT! Quem fechou questão contra as reformas, mesmo vendo as lágrimas de Vitor Buaiz e de Cristovam Buarque que não conseguem governar, estes 'administrativistas alienados'? Querem sanear o Estado? Sou contra! Eu quero um Estado imenso, uma grande escultura leninista paralítica, um grande elefante cheio de eleitores! O Estado é meu curral! Não somos ingênuos; está pensando que somos babacas!?"
Através da porta de vidro, apareceram José Genoino, Paulo Delgado e Eduardo Jorge, com gestos angustiados. Lula fingiu não vê-los e comentou, de boca torta para Prisco: "Estes sim, são intelectuais românticos. Deviam entrar para o PSDB!..." Prisco ouvia fascinado.
"Detalhes administrativos não são nada!" entoou Lula de olhos em alvo, "eu tenho um sonho, Prisco: é a Revolução Restauradora! Meu sonho são os músculos de operários com martelos e camponeses com espigas, meu sonho é uma grande alegoria getulista,
Prisco! Por isso, odeio estes ingênuos como Genoino que acreditam em racionalidade!
Quanto pior, melhor! Só acredito na revolução das massas heróicas e... eu no Poder!"
Lula parou embaraçado. "Quer dizer... o Povo no Poder!..."
"Claro... claro", sorriu Prisco, "o povo...."
"O diabo é que estamos sem matéria-prima", segredou Lula.
"O quê? Dinheiro há, dinheiro há!-" e Prisco batia nas algibeiras.
"Não é grana; são as 'massas'. Não temos mais massas, gemeu Lula em cava depressão".
"Como não?"
"Não temos... os operários de empresas privadas estão contentes com a inflação baixa, não se interessam por sindicatos e greves... Os 'lumpens', os pós-de-merda, os micos-pretos, os subcachorros só votam em bacanas tipo Collor ou são o mercado emergente das Igrejas Evangélicas... Estamos sem massas, caro Prisco."
"Sem massas, você emagreceu" - Prisco não perdeu a piada.
"Não brinca... Só temos os funcionários públicos... Eles formam o imenso corpo inerte da Nação. Se quebrarem a estabilidade dos funcionários, quebra-se nossa última massa de manobra, acabam as bases do PT!"
"E as nossas bases também, querido!," gritou Prisco, feliz. "Temos algo em comum!
Nós, com o clientelismo, vocês com o corporativismo!"
Pela fresta da porta, Abi Ackel e Paes de Andrade deram adeuzinhos.
"Fala, 'caçador de esmeraldas'!" Diga lá, Rei de Mombaça!," berrou Prisco, eufórico.
"Mire-se nestes homens, Lula! Estes são PhD em doces chantagens políticas..."
O coro dos funcionários cantava lá fora "Luar do Sertão." Lula pensou até em mudar nome do PT para PFC (Partido do Funcionários Corporativos). "Viu?", disse Prisco, "eles sabem que nós somos iguais. Eu sou o líder do 'clientelismo poético', você o inventor do 'corporativismo revolucionário'. A luta contra a modernidade nos une!
Somos a resistência da doce mediocridade brasileira!" E os dois sorriam com lágrimas nos olhos.

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