São Paulo, sexta-feira, 27 de outubro de 1995
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Quem esconde receita não merece ser amigo

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Você já reparou que, aos olhos dos outros, o cozinheiro é um ser grudado às suas receitas?
Comecei a reparar isso em programas de entrevistas de TV. Lá vão médicos que no final não simulam operações de fígado, economistas que não fazem contas, figurinistas que não desenham moldes.
A entrevistadora poderia até implorar ao Paco Rabane um saia de plástico cortada ali, na hora, simplezinha... e não implora.
Lá vão escritores que não rabiscam poemas, pintores que não pintam telas, a não ser que tenham por hábito pintar com os pés, com a boca ou possuídos por um pintor do além.
Já o caso com os cozinheiros é bem outro. Têm que estar de "toque", avental branco, frigideira na mão flambando bananas... Esteve aqui, no outro dia mesmo, um cozinheiro italiano e precisou levar toda a parafernália para a TV, até o fogão para demonstrar uma pasta "al dente".
O Emmanuel Bassoleil, tão bonito, com tanta coisa para contar, lançou seu livro e não deixou a panela em casa.
O pior é que o pobre do cozinheiro não pode ir além das chinelas. Ninguém lhe pergunta sobre a atual conjuntura, o último livro que leu. Ele é tido como um cara que faz. E só. Pensar, nunca. Mas isso é só um parênteses curioso e culinário.
Queria era falar justamente de gente que gosta de comer, de viajar para comer, de ler sobre comida, de escrever sobre comida, mas que não tem obrigação nenhuma de cozinhar bem, que não fez um curso técnico, que não é chef, não sabe cortar uma cebola a jato, nem moldar flor de tomate.
A maioria de nós cozinha amadoristicamente, ou melhor, para sobreviver, e aprendeu a cozinhar em manuais, em livros. É um aprendizado perigoso que não leva a maestrias técnicas e ainda põe o aluno preso ao professor. Se cai a receita presa à geladeira, cai também da cabeça do cozinheiro, que é imediatamente invadida por um branco insuportável.
Sumiu o caderno e a dona de casa não se lembra do bolo que faz para a família há trinta anos. É como se o bolo existisse só na receita, inteiro, com chantilly, nozes e morangos, e que só pode se materializar naquela página escrita, levemente manchada de manteiga e gema.
Aprender a cozinhar longe do fogão corta a intuição, corta o entendimento verdadeiro do que está acontecendo dentro da panela.
Como deveria ser boa aquela sabedoria compartilhada de mãe para filha, de geração em geração, sabedoria nutrida pela repetição e que no processo de se repetir se transforma em tradição.
Onde estão as mesmas receitas, repetidas sem fim, iguaizinhas, como histórias de crianças de onde não pode se mudar um A, perpetuadas através do tempo? Onde está a tradição oral? Os cadernos? Saíram de moda.
Estamos na hora do único, do original, do capítulo inédito, da criatividade sem limites. Tudo cansa muito depressa. Fica batido. Antes de a comida japonesa se firmar como clássica aqui no Brasil, entrou furiosamente em moda e, três meses depois, estava em baixa. "Ah, sushi, não... Está muito batido!" Oh, céus!
E com isso é preciso ficar criando meias-novidades todos os dias. E como é difícil! Desde que nasci, a única invenção que não consegui descobrir no passado é o peito de pato como bife sangrento. O resto é um ingrediente que se mistura a outro pela primeira vez, um prato bem arrumado, mais gordura menos gordura, mais tempero menos tempero.
E é complicado pesquisar nas universidades, principalmente se você nunca as frequentou ou saiu delas há muito tempo. E é difícil resgatar receitas, principalmente da mesa burguesa. Acreditam que ainda existem mulherzinhas e provavelmente homenzinhos que escondem truques, modos de fazer, temperos, pulos do gato.
Em nome de quê? Dá vontade de matar! Imaginem se os cientistas tivessem a mesma mentalidade e andassem por ai escamoteando invenções, fazendo doce para dar fórmulas de vacinas...
Suspeite que quem não compartilha uma receita de molho de tomate ou de patê de fígado, dos quais nem inventor foi. Não merece ser seu amigo. Não pode ser seu amigo. Como se comportará na hora da verdade, da crise, do aperto? Com a mesma generosidade?
Não é nada pessoal, mas fica aqui registrado meu olhar mais raivoso para os que guardam segredos de polichinelo a sete-chaves. Bom proveito façam deles, abaixo de sete palmos...
Aguardem os próximos e inéditos capítulos. Quem é dono das receitas? Como dar crédito aos inventores, se é que há? Tchann tchann tchann!

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