São Paulo, domingo, 29 de outubro de 1995
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As transformações do jornalismo - 2

MARCELO LEITE

Como prometido semana passada, esta coluna prossegue os comentários sobre o 2º Fórum Folha de Jornalismo e Mídia, realizado nos dias 18 e 19 de outubro em São Paulo.
A última mesa do dia 18, "Efeitos das Novas Tecnologias sobre Jornais e Serviços Noticiosos", contou com a presença de Patrick Vance, diretor de Projetos Especiais do serviço de notícias do jornal "The New York Times". Vance falou sobre a grande coqueluche do momento, em particular entre jornalistas mais jovens: Internet, World Wide Web (WWW, ou Teia Mundial), novas mídias.
No mais das vezes, a conversa não vai além de uma questão tão restrita quanto repetida: o jornal de papel vai acabar? A ela se seguem opiniões díspares, apoiadas em argumentos tão sólidos quanto dizer que não se pode dobrar uma tela de computador nem embrulhar sanduíches com ela...
Vance teve o mérito de não atolar nesse areal. Descreveu o que sua organização vem fazendo nessa área e levantou questões mais pertinentes. Para os pioneiros brasileiros, o mais importante talvez tenha sido ouvir de um representante da vaca sagrada "The New York Times" que também eles estão tateando, confusos.
Ninguém sabe, por exemplo, como fazer publicidade na WWW. Ou se as "publicações" oferecidas serão assinadas pelos leitores, ou de acesso livre. Tudo ainda é experimentação, tentativa e erro. Quem começar a acertar primeiro sairá na frente, como o velocista que reage frações de segundos antes ao tiro de largada.
Não basta, é claro, ter partida rápida. Sem fôlego, massa muscular, elasticidade e estratégia, nenhum atleta leva a medalha de ouro. Esta é uma das principais conclusões: não importa o suporte, é como provedores de conteúdo que os jornais estarão aptos a ganhar a corrida.
Fixar-se na pergunta pelo jornal do papel é agir como o capitão do navio de guerra na anedota contada por Vance ao final de sua palestra. De início, recusou-se a mudar seu curso para não abalroar o objeto que emitia uma luz à sua frente. Só o fez quando foi informado pelo marinheiro de segunda classe com quem deblaterava por rádio de que a luz era a de um farol em terra.

Por decreto
Dificuldades de agenda por parte do deputado federal Pinheiro Landim, relator da Lei de Imprensa em tramitação na Câmara, forçaram a inversão das mesas na manhã de 19 de outubro. O horário teve de ser cumprido à risca e o debate não chegou a decolar, embora os representantes da ANJ (Associação Nacional dos Jornais) e da Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) tenham feito discursos inflamados.
Landim foi mais contido. Limitou-se a descrever os pontos principais de seu substitutivo. De longe, o maior avanço da lei em gestação -que substituirá a autoritária Lei 5.250, de 1967- é o fim das penas de reclusão para os chamados crimes contra a honra ou delitos de opinião (calúnia, difamação e injúria). A idéia é aplicar multas e penas alternativas, como prestação de serviços à comunidade.
Fernando Ernesto Corrêa, diretor do Comitê Jurídico e de Relações Governamentais da ANJ, defendeu de início ser desnecessária uma lei especial para a imprensa. Bastariam, para prevenir e punir eventuais abusos, as leis ordinárias. A simples existência de uma legislação específica constituiria já um cerceamento à liberdade de imprensa.
Ocorre que há uma demanda social para alguma forma de controle da imprensa e, neste caso, a ANJ defende uma lei tão enxuta quanto possível. Na opinião de Corrêa, esta deve restringir-se a disciplinar as relações entre imprensa e sociedade.
Dele discordou Américo César Antunes, presidente da Fenaj. Na sua visão, a Lei de Imprensa deve ser abrangente a ponto de incluir detalhes como composição de conselhos editoriais e até a obrigatoriedade de órgãos de comunicação contarem com ombudsman.
É um vício grave das corporações, no Brasil, o da hiper-regulamentação. Querem transformar o mundo com parágrafos e alíneas. Pode parecer contraditório, partindo de um ombudsman, mas nada é mais absurdo do que obrigar um jornal a criar esse cargo: ele só faz sentido se nascer da convicção de sua direção de que a crítica independente e a abertura de um canal desimpedido de comunicação com os leitores são necessárias para o aperfeiçoamento da imprensa.
Outro ponto de discordância entre ANJ e Fenaj é quem terá a primazia na hora de tirar do bolso o valor de futuras indenizações, se o jornalista ou o órgão de imprensa. Aqui me inclino para a posição da federação, pois a grande maioria dos jornalistas hoje são simples assalariados, prepostos de empresas que devem estar preparadas para ressarcir eventuais danos que sua atividade lucrativa produzir (embora todos concordemos em que é preciso impedir a indústria das indenizações, como a que floresce nos EUA).
Não se deve esquecer, porém, de que há jornalistas e jornalistas. Uma coisa é a situação do repórter trabalhando como mouro por um piso salarial de fome. Outra realidade, muito diversa, é a do colunista famoso e remunerado a peso de ouro, que dispara opiniões a torto e a direito sobre quem bem entender.

De copo cheio
A palestra sobre "Imprensa e Governo" proferida a seguir pelo porta-voz da Presidência da República, Sergio Silva do Amaral, ecoou alguns dos temas do debate sobre Lei de Imprensa. Em resumo, Amaral fixou uma premissa -a imprensa passa das medidas na vigilância sobre o governo- e extraiu um corolário: é preciso dotá-la de alguma forma de controle social.
O porta-voz mostrou que essa discussão é mundial, vale tanto para a aguerrida imprensa norte-americana pós-Watergate quanto para a brasileira, mais para atrevida, pós-Collorgate. Repetiu a queixa clássica dos governantes de que os jornais mostram somente que o copo está meio vazio (aspectos negativos da administração) e não que ao mesmo tempo está meio cheio (suas realizações).
Ora, não cabe ao cão de guarda abanar o rabo para transeuntes que passam pela calçada sem invadir a propriedade de seu dono. Do mesmo modo, fiscais não são pagos para dar diplomas de honra ao mérito a cidadãos e empresários em dia com seus impostos.
Também não é função da imprensa ficar caçando feitos de um governo para divulgar. Se forem de fato importantes e dignos, acabarão por impor-se como a única coisa que interessa: como notícias. O resto é propaganda.
É claro que há noticiários enviesados, mas não é certo dizer que eles só se entortam contra o governo. O jornalismo no Brasil infelizmente ainda tem exemplos em demasia da inclinação oposta. Isso não quer dizer que órgãos de imprensa não cometam injustiças e abusos, inclusive contra o governo, mas esses casos têm de ser dissecados e purgados na mesma esfera em que nasceram: frente à opinião pública.
Esse é o princípio que rege a função do ombudsman. Com nomes e atribuições diferenciados, esse espírito já ganha corpo entre os principais órgãos de comunicação do país. Acho preferível que surja de forma espontânea, não como um corpo estranho -como o Conselho de Imprensa aventado pelo porta-voz- sempre sujeito a instrumentalização.
O mais importante, no entanto, é deixar algo bem claro: isso nada tem a ver com a atitude da imprensa perante o governo, que deve ser e permanecer desconfiada.

Efeito paella
O 2º Fórum Folha foi encerrado com um debate provocativo, sobre "A Experiência com Fascículos". Quem introduziu o tema foi Ángel Luis de la Calle, responsável por eles na empresa El País Internacional S/A, do mesmo grupo que edita o conhecido jornal espanhol "El País".
Calle começou por afirmar que, pessoalmente, não gosta de fascículos, logo acrescentando que estes representam um importante instrumento para aumentar circulação de jornais e revistas. Importante, porém arriscado.
O mercado espanhol, por exemplo, embarcou na montanha-russa há sete anos. Na descrição de Calle, alcançou o ponto de saturação ou algo muito próximo dele. Para continuar atraindo a atenção do comprador casual, oferecem-se brindes cada vez mais sofisticados. E caros: coleções completas de CDs, cursos de línguas estrangeiras com brochuras, fitas de vídeo e disquetes de computador, dicionários multimídia.
Uma das imagens usadas por Calle para qualificar esses adventícios foi a de drogas viciantes, das quais todos querem largar, mas não sabem como. A esta altura, afirmou, os dirigentes de jornais e revistas já amaldiçoam o autor da brilhante idéia.
A imprensa brasileira, como se sabe, está ainda muito longe disso, mas também não é motivo para deixar de refletir sobre o próprio futuro.

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