São Paulo, segunda-feira, 30 de outubro de 1995
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Fé, amor e perdão

FRANCISCO ROSSI

No momento de um evento traumático que abala a opinião pública, que gera confrontos, que exacerba paixões, é difícil qualquer análise racional estribada apenas na razão e na lógica. E quando esse evento se relaciona com a fé de milhões de pessoas, representando essas pessoas a maioria de um povo, e colocando-se no centro da discussão tema que envolva questões teológicas e legais, tudo fica ainda mais complicado.
Penso não ser impossível tentar buscar uma resposta mais adequada a essa delicada questão no campo da fé, se bem que hoje em dia fique mais fácil aceitar a lógica da ciência e do raciocínio humano do que o impossível do milagre, no qual só crê aquele que tem fé.
Refiro-me à agressão recentemente praticada contra uma imagem de Aparecida. Essa agressão representa um grande desafio às pessoas que crêem no Criador e que devem buscar uma resposta muito mais no campo da fé do que na letra da lei escrita pelos homens.
Ser cristão é submeter-se inteiramente à orientação da palavra de Deus, a Bíblia, e ali, em Romanos 13, versículos 1 e 2, fala-se sobre a sujeição de todas as pessoas às autoridades superiores e ainda sobre uma séria advertência àqueles que assim não procedem: "E as que resistem trarão sobre si mesmas a condenação".
A Constituição brasileira prescreve no artigo 5º, inciso VI, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de cultos e as suas liturgias. Ora, a Constituição é dada ao povo pelas autoridades superiores referidas no texto bíblico e portanto deve ser acatada por todo cristão. A imagem de Nossa Senhora Aparecida faz parte da liturgia católica e, embora não aceita pelos evangélicos como objeto de culto, deve ser respeitada.
O gesto de respeito é a cristalização do amor que o evangélico deve sempre devotar àquele que reverencia uma imagem e isso não vale apenas em relação ao católico, mas a todos, independentemente da prática religiosa. Seja quanto aos que praticam cultos afros, orientais e até mesmo quanto aos silvícolas que, na pureza de suas vidas, sem nunca terem ouvido falar de Jesus, têm seus deuses e objetos de adoração. O amor que devemos praticar e que deve alcançar todas as pessoas, inclusive os ateus, é o próprio Deus que nos ensina em sua palavra, em Deuteronômio 10:17.
É um amor sem condições. Amor irrestrito. O gesto de agressão divulgado pela televisão não se coaduna com a idéia desse amor divino. A misericórdia de Deus nos alcança no fundo do poço, na podridão, na miséria espiritual, na angústia, na aflição e a salvação divina pode ser simbolizada pela mão invisível que afaga, consola, nos ampara e finalmente nos arranca das trevas e nos coloca diante de sua beleza e de sua luz.
Esse gesto extraordinário de salvação é possível porque esse Deus que estende sua mão é um Deus de amor que doou-se a si mesmo na pessoa de seu filho Jesus, que verteu seu sangue precioso em uma cruz após ter sido massacrado pelos homens com socos, tapas e pontapés. Na hora da crucificação, no momento da morte de Jesus, aos pés da cruz, quem estava lá, sofrendo mil dores? Maria, mãe de Jesus.
Ela, que é amada pelos evangélicos porque é bendita entre as mulheres; santa, teve gerado em seu ventre, por obra do Espírito Santo, nosso senhor e salvador, Jesus. Maria, que sendo mãe se fez serva do filho, que é bem-aventurada e que nós, evangélicos, temos certeza de que a veremos nas mansões celestiais e que teremos oportunidade de dizer-lhe pessoalmente o quanto a amamos. Nisso cremos, pela fé.
A prática do amor implica que enfrentemos e superemos um enorme desafio lançado pelo próprio Jesus que nos ensina que devemos oferecer a outra face quanto formos esbofeteados (Mateus, 5:39). No versículo 46 do mesmo capítulo 5 ele completa seu ensinamento: "Pois se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis?" Está aí nesse texto bíblico uma grande oportunidade para que o católico, ofendido com a agressão do bispo da Universal, possa exercitar sua capacidade de perdoar. Perdão completo, total, irrestrito.
A intolerância religiosa tem sido uma constante ao longo do processo histórico e está presente em todas as religiões e seitas. É um mal que precisa ser extirpado. Não há como duvidar que o episódio da agressão à santa, que gerou justa indignação entre os católicos, também gerou espanto entre os evangélicos e foi um ato isolado e impensado de uma pessoa que não representa o pensamento de uma coletividade.
Esse fato não se esgotará a curto prazo. Sempre haverá quem tente dele se servir para acirrar ânimos e tentar faturar dividendos, especialmente no momento do embate político, quando as paixões mais se acendem. A exemplo do que já ocorreu em passado recente, tentar estabelecer o confronto entre maioria e minoria não é plano descartável para quem joga com a intolerância religiosa como arma de marketing, esquecendo-se da possibilidade de a minoria um dia ser maioria e, nessa hipótese, caso a mesma tentativa ocorra, será igualmente equivocada, até porque nunca deixará de ser preconceituosa e nada edificante.
Ser cristão é ter um compromisso sincero com Deus e, consequentemente, estar disposto a amar e perdoar, a pagar qualquer preço para que o amor de Cristo una as pessoas. É ter disposição até mesmo à renuncia, se ela se configurar como postura que sirva para aparar arestas e unir pessoas no único amor que constrói: o amor de Deus!

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