São Paulo, domingo, 5 de novembro de 1995
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Cave, canem, cuidado com o cão

WALY SALOMÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Erramos: 11/11/95
O artista plástico Hélio Oiticica foi identificado erroneamente em foto publicada à pág. 5-13 ( Mais!) de 5/11 como sendo o poeta Torquato Neto. Na mesma pág. é informado incorretamente que o poeta nasceu há 50 anos. O correto é 51 anos.
"The words of a dead man
Are modified in the guts of the living"
(As palavras do morto/são modificadas
nas entranhas do vivo)
"In Memory of W.B. Yeats", Auden

Por entre as célebres pinturas murais recheadas de imagens de paus priápicos -o império da adoração do espermático deus Phallus Erectus sobre os outros deuses domésticos- que ornavam o lar doce lar da antiga cidade romana de Pompéia, arrasada por uma erupção do Vesúvio, uma advertência restou: "Cave Canem", "cuidado com o cão" -inscrição frequente à entrada das casas. Esta tabuleta ficou ganindo para a eternidade contra a amnésia e a esclerose.
Pompéia, local de ócio dos romanos ricos, sepultada por camadas superpostas de lavas e cinzas. Com as escavações, um vero banco de dados foi coletado sobre a construção das moradias de lazer e o "modus vivendi" (a assim chamada vida privada) dos antigos.
Vi e ouvi: Torquato me contou num bar que existia na avenida Ataulfo de Paiva, próximo do Teatro de Bolso do Leblon, que queria fazer um filme chamado "Os Últimos Dias de Paupéria". Nada restou deste anteprojeto. Não foi encontrado nenhum resquício de roteiro, nenhum fiapo de argumento ou diálogo.
Devaneio? Quimera? Mera máquina desejante no vácuo?
O relatório final da equipe de resgate: era somente um título acerbo-espirituoso. Restava uma paródia de título de filme americano, uivando contra o esquecimento: "Os Últimos Dias de Paupéria". Para preservar a sua intensa carga de sinais, usei-o como embira ou cipó ou cordão do feixe de textos, crônicas, poemas, cartas e depoimentos de sanatório que foi lançado, em 1973, pela editora Eldorado (o livro incluía um disco com Gal-Gil e, aliás, para que o disco existisse, tive que aplicar lances parecidos com a técnica de guerra de guerrilha urbana da época) e, posteriormente, em 1982, uma edição ampliada, pela editora Max Limonad.
Foi um trabalho de resgate que recusava a linearidade, pois se desdobrava em ziguezagues. Os critérios de seleção tinham que respeitar as variantes de um mesmo poema, por exemplo. Não tinha cabimento um corte severo de eleição da "melhor" variante. Somente o autor, o suicidado pela paráfrase, poderia ter escolhido tal vertente ou tal outra. Daí optei por uma amostragem perspectivista, ou seja, a revelação dos diferentes vértices encontrados. Há quem não suporte o rugir das crateras, dos abismos, dos buracos da liberdade, ou seja, encontrar-se em alto mar quando supunha-se atracado em porto seguro. São os afetados pela Síndrome S. Kaplan, um tipo de morbosidade neurótica em que a cabeça não pensa por si, mas é movida por uma superlotação de clichês. O pensamento liquefeito infectado por uma subespécie tropical (tropical até demais!) de vírus.
"Os Últimos Dias de Paupéria":
Paupéria: uma região de parcas pecúnias de Pindorama, isto é, a terra das juçaras, das íris, das pupunhas, dos licuris e dos babaçus.
Paupéria: miserabilismo terceiro-mundista. Pindaíba. (O Terceiro Mundo, essa cilada conceitual.)
Paupéria: inversão cinza e sistemática do baudelairiano convite à viagem: onde tudo não é senão desordem, feiúra, pobreza, inquietação e antivolúpia: tristerezina total.
Os últimos dias: os dias que antecedem o dia D. Catastrofismo do livro das revelações (ou seja, etimologicamente: apocalipse) e reiterada anunciação da morte pessoal. Coro por coro, prefiro partilhar o coro desafinador do poeta Frank O'Hara, praticante-mor da Action Poetry, homóloga à Action Painting de Jackson Pollock, e repetir:
"I got tired of D-days" ("Cansei de dias D").
É fato: o Brasil não possui vulcão.
É fábula: o poeta equiparar-se aos eflúvios quentes do Vesúvio. Cobrir de cinza e lava o vivido.
Um parágrafo histórico-explicativo sobre "Navilouca, o Barco Embriagado".
Assim a lenda se escorre/ A entrar na realidade.
Torquato e Sailormoon dirigiram juntos o atualmente legendário almanaque "Navilouca", título que pesquei da "Stultifera Navis" que Michel Foucault escrutinou na "História da Loucura na Época Clássica", mas o dito paquete ficou fotolitado e encalhado na areia movediça do começo dos anos 70. Torquato saltou da espaçonave vida, a dupla Luciano Figueiredo/Óscar Ramos, responsável pelo projeto gráfico e design da revista, partia para viver na "swinging London"; a "Navilouca" parecia uma aventura insana e inconclusa, apesar da acurada seleção de seus tripulantes, corte certeiro no quadro cultural da época. Sailormoon continuou insistindo, mas somente em 1974 é que, graças ao também aqualouco Caetano Veloso, afinal conseguiu-se a adesão financeira do André Midani, então mandachuva da Polygram brasileira. Chuvas mandadas que fizeram a lunática "Navilouca" zarpar...
"É impossível ler uma linha de Kleist sem pensar que ele se matou. Parece que o seu suicídio precedeu sua obra". Estas palavras de Cioran são ainda melhor aplicadas no caso Torquato Neto, que, exceto as letras de músicas gravadas, as colunas publicadas sob o título de "Geléia Geral", os poemas visuais da "Navilouca" e mais um punhado de textos lançados na imprensa nanica, tudo o mais era inédito e escondido. Nesta categoria de escondido figuram por exemplo os apontamentos de sanatório que intitulei "D'engenho de Dentro", para deixar marcado o lugar de origem e o motor autodestrutivo. O que ficava patente no temor e tremor de tirar da moita os apontamentos de sanatório é a abdicação do direito de ser diferente, quer dizer, "louco frente à opressão familiar e social.
Nem canibal "à la manière" de Picabia, nem tampouco antropófago ao modo de Oswald, ele girava no eixo frenético da autofagia, ou seja, só sonhava com a erupção total e absoluta que arrebentasse a boca do balão, ou melhor, a boca e o balão, quer dizer, a própria fonte emissora e a receptora; ao mesmo tempo, o vulcão Vesúvio e a Pompéia de si-mesmo. Muitas vezes escrever um livro ou fazer um filme representa adiar um suicídio, mas no caso Torquato Neto pode-se afirmar que o suicídio precedeu e originou a "obra".
A maneira como Drummond respondeu ao próprio "suicidal drive" é interessante de ser roçada aqui: Drummond seguiu, como se segue um mantra, seu auto-acalanto "Carlos, sossegue, não se mate", e fez da poesia a sua consolação, a sua cachaça sublimada, sublimadora e sublime. A madureza resulta de uma implícita aceitação maior de tudo do sistema de erros, da impotência por não explodir a ilha de Manhattan, da tristeza e da melancolia, do bom e do ruim, do bem e do mal "blended". Resta incorruptível aquele diamante impulsionador impresso na medula drummondiana: "O ódio é o melhor de mim".
Claro enigma que contrasta com a platitude da poesia confessional de Sylvia Plath e sua fixação banalizadora-estetizante da morte: "Dying/ is an art, like everything else", ou seja, "Morrer/ é uma arte, como tudo mais".
Ironia, sorriso escaninho ou gargalhada zombadora, elegia ou ode, amarga ou gaia ciência: são algumas veredas para além da "self-pity" masoquista. Contudo, a autocomiseração é a marca registrada de "Death & Co., "Lady Lazarus et caterva. Quão tautológico é o cogito nascido da extrema e estéril clarividência da tristeza: triste "ergo sum"!
Entre a oswaldiana linha recortada do manifesto antropófago "alegria é a prova dos nove" e a linha seguinte, ancorada na sabedoria de um adagiário conservador, que reza "a tristeza é o meu porto seguro, o coração ainda quer balançar, mas o peso maior recai sobre a última linha, infelizmente. Talvez mordido pelo escorpião do seu signo zodiacal, Torquato grudou em si a "persona" de um anjo que se queria ainda mais torto que o anterior anjo "gauche de Carlos. Em vez de tornar-se crítico irônico ou pagão politeísta adorador do mundo multifacetado, Torquato Neto "paganinizou-se" num moto perpétuo de auto-imolação. Semelhante ao gosto do escritor japonês Mishima, que, medusado pela imagem de São Sebastião flechado, executou o haraquiri enquanto expressão-limite da "body art camicase". O suicídio seria uma sinopse niilista haicai da vida?
Mas as semelhanças acabam aí, na unidade abstrata da petrificação "mesmerizante", porque quanto ao espectro ideológico eram opostos: (sob a merencória luz da lua) Torquato era antimilitarista, anarquista, simpatizante da nova esquerda, apartidário, enxotado para o que Auden designava "subúrbio da discórdia", um "Pierrot le fou" tímido-tropical que parafraseou os versos do poema "Testamento, de Manuel Bandeira: "Mas num torpedo-suicida/ Darei de bom grado a vida/ Na luta em que não lutei!; Mishima foi uma máquina de guerra de extrema direita pela restauração dos valores "altivos e nobres, uma parada e um aparato militar, um império de signos fascistas".
"Perdão foi feito pra gente pedir" -canta o samba antigo, mas o terno Torquato não pedia perdão para si quando se matou, só pedia no bilhete final que não fizessem muita zoada para não acordar Tiago, seu filho. Parafraseando assim, pela última vez, Drummond, o Drummond da "Canção Amiga": "Eu preparo uma canção/ Que faça acordar os homens/ E adormecer as crianças".
Torqua não conseguiu firmar um armistício consigo próprio e, suicidado pela paráfrase, botou fogo no circo do corpo. Descanse em paz, Pierrot "mon ami".

Uma fábula
Uma fábula ao modo de Esopo.
Uma só fábula e dois poetas protagonistas.
Eles eram parecidos e eles eram diferentes. Um era amigo do outro.
Um tinha escrito em "Rua Real Grandeza" que era "um cara sem saída".
O outro escreveu "Pra Dizer Adeus" e dezenas de variações sobre o mesmo tema. Um era o sem saída prévia, este um tem até o dia de hoje que inventar suas vias e vertentes. O outro era o sem-solução, para quem o mal maior é ter nascido e, óbvio, não queria cavar saídas, falava sempre de ocupar espaço no mundo objetivo, mas ele mesmo era sem ilusão, e sem ilusão não se cava nenhum buraco a não ser o da própria cova, que aliás é cavado por outros, e é cômodo porque é permanente. É uma sensação cômoda e permanente a que invade o um que deita em uma rede mole e gostosa e escreve parodiando Esopo. Um Esopo destituído de lições morais. Um Esopo desprovido das virtudes do sermão.
"Let's play that": viver inquieto e duro sem as fissuras dos fantasmas da má consciência.
"A nossa é essencialmente uma era trágica, por isso nos recusamos a tê-la como tal. O cataclisma aconteceu, achamo-nos entre ruínas, começamos a construir novos e pequenos habitats, a nutrir novas e pequenas esperanças. É um trabalho bastante duro: já não há caminhos fáceis à nossa frente, temos que contornar obstáculos, saltar por cima deles. Temos que viver, não importa quantos céus despencaram. Recortei e traduzi de oitiva o mais que apropriado trecho inicial de "Lady Chatterley's Lover", do gigante D.H. Lawrence, com o claro propósito de exorcizar um fantasma, "to lay the ghost", enfim.

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