São Paulo, sábado, 11 de novembro de 1995
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'Porto Sudão' reavalia ideais dos anos 60

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Porto Sudão" é o primeiro livro do francês Olivier Rolin, 48, publicado no Brasil, mas é seu quarto romance. É o relato de um homem que vive isolado no mar Vermelho e um dia recebe uma carta anunciando a morte de A., seu amigo que não via há 25 anos (leia texto ao lado).
"Um escritor não deve ser um moderado. Escrevemos a partir de uma revolta, de uma insatisfação profunda. Os escritores que estão sempre contentes com todos e com tudo, em geral, não são grande coisa", disse Rolin à Folha por telefone, de Paris.
O escritor trabalha como consultor literário da editora Seuil. No início de dezembro, ele vem ao Brasil para promover o lançamento do livro, a convite do Consulado da França em São Paulo.

Folha - O sr. acredita que "a literatura é uma profissão sem futuro", como diz o narrador de "Porto Sudão"?
Olivier Rolin - Provavelmente, sim. Mas essa é uma fórmula provocadora. Espero que a literatura tenha futuro. Se bem que hoje muitas coisas conspirem contra seu futuro e seu presente esteja ameaçado. Em 20 anos, é possível que as pessoas não leiam mais.
Folha - Por quê?
Rolin - Deve-se a muitas coisas. A Internet, por exemplo, outro dia me explicaram o que era. É de uma potência e rapidez de investigação formidáveis. Imagino que a maneira de aprender, de pesquisar, de se distrair vai ser diferente. Há a televisão também. As pessoas cultivadas dizem hoje que não têm mais tempo de ler. Isso é absurdo. As pessoas no mundo todo têm hoje muito mais tempo livre do que no começo do século. Naquele tempo trabalhava-se muito mais.
Também, a literatura era característica de uma concepção do tempo com profundidade, ligado à história. Cada vez mais estamos na idade do efêmero, do instantâneo. É uma mutação geracional profunda. Os jovens hoje não têm nenhum conhecimento da história, e não é simplesmente porque eles não querem saber. Mas a concepção do tempo como uma lenta evolução não é mais a concepção moderna do tempo, a que é dada pela TV e pelo jornalismo.
Folha - Por que o sr. escolheu uma jovem para simbolizar a frivolidade do mundo moderno?
Rolin - Não acho que ela simbolize só a frivolidade do mundo moderno. Ela é sempre imaginada, não há nada certo sobre ela. É bem misteriosa. É ao mesmo tempo ensimesmada, fechada em si mesma, grave, angustiada, e também representativa dessa cultura do efêmero. Há uma passagem em que se diz que é uma alma "ao mesmo tempo dramática e frívola". Tem sempre um aspecto duplo.
Ela tem pelo menos vinte anos menos que os outros dois personagens e está muito mais enraizada nesse mundo moderno. Eles começam já a envelhecer e foram militantes políticos, coisa que hoje em dia soa quase aberrante.
O fato de ela ser mulher e eles homens é só porque eu sou um homem. Talvez eu tenha me enganado, mas não acho que isso seja uma misoginia. Para mim, a jovem é uma personagem misteriosa e que se deve amar. Se você quiser uma confissão: eu amo essa personagem. Não é sempre que a gente ama as pessoas que compreende e que nos compreendem.
Folha - Seu livro revela uma grande nostalgia dos anos 60...
Rolin - Não queria fazer um livro nostálgico. Digo várias vezes que essa geração era extremamente ingênua, que acreditou em coisas que ficaram quase ridículas. Não digo nunca que aquilo em que acreditaram era super inteligente. Simplesmente digo que havia uma espécie de entusiasmo, generosidade e mesmo coragem que era, enfim, bonito. Mas tenho um olhar bastante irônico sobre essa época.
Não se pode dizer que fomos heróis. Nos enganamos tanto, que não podemos ser heróis. Não existem heróis idiotas.
Mas não gosto do cinismo contemporâneo, não gosto do fato de o dinheiro ter se tornado o sonho de todo mundo.
Folha - E o que se poderia fazer hoje para sair do cinismo?
Rolin - Se eu soubesse exatamente, estaria mais tranquilo. Acho que, de um lado, os grandes mitos totalizadores, a revolução, essas coisas mostraram seus limites e também a sua mentira.
Acabo de chegar de três semanas no Vietnã. Quando você vê as pessoas dizendo que os comunistas são ricos e os camponeses, pobres, bem, é a verdade. Para eles é trágico e para nós, amargo, irônico.
Não acredito mais nisso, mas ao mesmo tempo não acredito de jeito nenhum que as pessoas, principalmente os intelectuais e os escritores, devam se desinteressar dos assuntos do mundo, devam simplesmente se preocupar com seu sucesso pessoal. Eu tento ainda me interessar, tento militar mesmo, como se dizia. Fui várias vezes a Sarajevo, tentei ajudar para que existisse ali uma vida intelectual mínima, apesar dos bombardeios. Me sinto preocupado que neste momento reapareça a guerra e os campos de concentração na Europa. Acho um grande escândalo.
As pessoas devem se mobilizar contra isso. Não com as mesmas ilusões de antigamente. Não devem ter o sentimento de que estão lutando pelo paraíso sobre a Terra. Mas devem lutar contra o inferno sobre a Terra.
Na França e na Europa, acho que devemos ficar muito atentos e exigentes contra as possibilidades de desenvolvimento do racismo. Mas, ao mesmo tempo, não é porque digo isso que vou acreditar em todas as besteiras dos "bem pensantes" contra o racismo. Devo dizer que não tenha grande simpatia pelo Islã, não escondo. Acho que é uma das forças mais obscurantistas e mais reacionárias no mundo.
Folha - O sr. é irônico com o meio literário francês. Ele é tão fútil quanto o descreve?
Rolin - Um romance não é um documentário. Podemos e devemos ser parciais, injustos e subjetivos. Se fosse um ensaio sobre o meio literário, eu acharia injusto. Mas sendo um romance, e em parte eu penso o que escrevi lá, achei que tinha o direito de dizer.
É verdade que tem um lado frívolo, vendido, corrompido, há tudo isso no meio literário. Os prêmios literários, todo mundo sabe, são assim. Ganhei um prêmio literário e aceitei, devo dizer logo.
Folha - "Porto Sudão" é diferente de seus outros livros?
Rolin - Sim, é diferente dos que já escrevi e provavelmente também dos que vou escrever. Primeiro porque é bem mais curto e também mais pessoal. É também escrito em uma língua muito mais simples, clássica e até arcaizante -o que fiz de propósito. Uso tempos verbais que ninguém usa mais.
Meu livro anterior, "A Invenção do Mundo" tem mais de 500 páginas e é de certa forma barroco, muito mais complicado e moderno -misturado com outras línguas, mais "joyciano".
Folha - Essa opção pela linguagem arcaizante foi para manifestar algo sobre a literatura?
Rolin - Esta foi uma maneira de tentar me proteger. O risco, quando se escreve uma coisa que vem de uma zona muito pessoal e muito profunda, é o de ser indecente, de se deixar levar por todo o tipo de transbordamento, de confissões. Uma maneira de se proteger disso é usar um estilo bem vigiado, distante, como uma armadura estilística.
A segunda razão é que já que pus em cena personagens ultrapassadas por sua época, me pareceu bastante normal que sua maneira de escrever fosse também arcaica.

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