São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Relato trata do cotidiano de Palmares

AURELIANO BIANCARELLI; JAIR RATTNER
DO ENVIADO A LISBOA

Dois extensos documentos relatam o cotidiano, os costumes e as leis que vigoravam no interior dos vários quilombos que compunham Palmares. Um deles foi escrito em 1677 por Manuel de Inojosa, um proprietário de terras e de escravos que buscava destruir Palmares.
Inojosa encarregou um de seus negros de -em troca de futura alforria- se infiltrar nos quilombos e na volta relatar o que viu.
O documento foi transcrito pelo historiador Décio Freitas.
O outro relato foi localizado pela Folha no Arquivo Municipal e Biblioteca Pública de Évora (145 km a leste de Lisboa). O arquivo foi fundado em 1805 pelo arcebispo local e reúne documentos de nobres e autoridades que tiveram responsabilidades no governo do Brasil colônia.
Cópia dos relatos de Évora também foi achada por Freitas na Biblioteca Nacional de Lisboa e no Arquivo Histórico. Foi transcrita no Brasil pela "Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Etnográfico" de 59 (volume 22).
O documento, batizado de "Guerras Feitas aos Palmares de Pernambuco" (1), foi escrito a pedido do então governador Pedro de Almeida entre 1675 e 1678.
Os dois relatos -o de Inojosa e o do governador- trazem informações contrastantes sobre os costumes familiares em Palmares.
O segundo diz que "cada um tem as mulheres que quer; (...) o rei, que nesta cidade assistia (na época era Ganga-Zumba), estava acomodado com três mulheres, uma mulata e duas crioulas, da primeira teve muitos filhos, das outras nenhum".
É certo que o rei tinha companheiras à disposição -como também teria se dado com Zumbi-, mas os palmarinos viviam à míngua de mulheres. Tanto assim que Inojosa relata o regime de poliandria estabelecido em Palmares, especialmente no Macaco, o mocambo principal onde o rei vivia protegido por maior número de guerreiros.
Cada fugitivo que chegava a Palmares era distribuído a uma família em que comandava uma mulher, relata Inojosa. "Todos estes maridos se reconhecem obedientes à mulher, que tudo ordena, assim na vida como no trabalho."
Cada família -formada pela mulher e vários homens- recebia uma data de terra que deveria cultivar em proveito de todos. "Entre eles tudo é de todos, e nada é de ninguém, pois os frutos do que plantam e colhem, ou fabricam nas suas tendas, são obrigados a depositar às mãos do conselho, que reparte a cada um quanto requer seu sustento."
O documento do governador diz que "são grandemente trabalhadores, plantam todos os legumes da terra, cujos frutos formam providamente celeiros para os tempos da guerra e do inverno".
Os dois textos falam da organização política dos mocambos. "Suas queixas, assim as da pretendida família como as da república, são vistas por conselhos de justiça, sem recurso; os maiorais, todos, são escolhidos em reunião pelos negros que assistem no mocambo, mas o maioral principal é escolhido só pelos maiorais (...)."

NOTA
(1) Biblioteca Pública de Évora, códice 116/2-13, peça 9, folhas 51 a 59v; transcrição de Jair Rattner; Arquivo Histórico Ultramarino, códice 265

Colaborou Jair Rattner, especial para a Folha, de Lisboa

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