São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
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Um pensamento corsário

MARIA BETÂNIA AMOROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia 2 de novembro completou-se o vigésimo aniversário de morte de Pasolini. Todos sabemos que teve uma morte trágica, brutalmente assassinado, numa espécie de campinho de futebol de periferia, em Roma: rosto desfigurado, ossos quebrados pelos pneus do seu carro. Nunca houve concordância sobre o veredicto que condenou Pino Pelosi, na época com 17 anos, a nove anos e meio de prisão. Parece inverossímil que um jovem como Pelosi fosse capaz de tanto estrago já que Pasolini era esportista, com músculos fortes e físico sempre em forma. Pensou-se em complô: forças políticas teriam dado ordens para a execução.
Na 19ª Mostra Internacional de Cinema foi exibido o filme de Marco Tullio Giordana, "Pasolini, um Crime Italiano", que, parece, reabrirá o caso sobre a morte do cineasta. Tanto o crime como a reabertura do processo pedem uma interpretação "pasoliniana". Passemos a ela.
A morte -como dizia o intelectual italiano, comparando-a à montagem cinematográfica-, tem o poder de condensar a vida, selecionando sequências que passam a ser significativas, dando o sentido geral da existência. Com o filme de Giordana retorna-se à suspeita de crime político, o que daria maior nobreza à morte, retirando dela os "excessos" de crime com características homossexuais. Enquanto se fala da morte, procuram-se culpados, é deixado de lado o que há de mais importante em Pasolini: seu pensamento radical. Ou melhor, lendo o que escreveu, temos a impressão de que não existe outra forma de pensar: pensar é radicalizar.
Nos últimos anos de sua vida Pasolini atacou, mais do que nunca, em todas as frentes. Fez cinema, escreveu ensaio, poesia e ficção, apareceu nas televisões, nos jornais, deu conferências, polemizou sobre aborto, sobre a falsa tolerância da sociedade de consumo, sobre o genocídio cultural executado pelo novo poder, sobre os resultados catastróficos do ensino obrigatório e da televisão porque, enquanto intelectual, qualquer um desses assuntos dizia respeito a ele; seu inimigo número um era o "homem de idéias" contemporâneo, que se rendia ao "bom-mocismo" em nome da modernização da Itália, mesmo que para isso precisasse fechar os olhos para o que ia acontecendo mundo afora.
Apoiados na crença da auto-suficiência do seu modelo de razão, isolados em suas casas, atemorizados e engolidos pelas obrigações e recompensas dos meios de comunicação de massa, acabavam por esquecer o que era pensar: o velho movimento de ir às raízes; o resto é "Realpolitik", "cínica prevaricação dos dados fatuais e do bom senso" (1) que poderia enganar jornalistas, preocupados em criar notícias, mas não intelectuais.
Ir e vir na argumentação, discordar de todos, lembrar o que se procura esquecer pela incomodidade, alterar a avaliação do significado e valor das coisas quando as coisas se transformam e ainda não têm nome e, finalmente, dar nome à elas: foi assim que Pasolini se tornou o intelectual que foi, polêmico, mas a polêmica, para ele, é inerente ao fato de ser intelectual.
Passados 20 anos de sua morte, definitivamente o mundo mudou. A prova cabal da sua transformação está na escolha de Berlusconi para primeiro-ministro da Itália. Como foi possível acontecer a um país com tanta história política eleger o homem da televisão, o Silvio Santos local? As raízes dessa revolução cultural -só que, contrariando algumas expectativas, realizadas pela "direita"- foram apontadas nos anos 70, com muita clareza e apreensão, por Pasolini.
Em 18 de julho de 1975 escreveu, no "Corriere della Sera", um artigo intitulado "Pannella e a Dissidência', uma longa carta para o secretário-geral do antigo Partido Radical Italiano, o qual se tornou conhecido por suas intervenções políticas tempestuosas e pouco ortodoxas. Eram amigos e estiveram juntos em muitas ocasiões. Nesse momento, entretanto, Pasolini chama sua atenção para a mudança de sentido das palavras "obediência" e "desobediência".
O contexto político do artigo é dado pela vitória do extinto Partido Comunista Italiano nas quatro maiores capitais italianas: Roma, Milão, Nápoles e Turim, além das tradicionalmente comunistas Bolonha e Florença, nas eleições de 1975. O massacre nas urnas da Democracia Cristã e a vitória clamorosa dos comunistas, segundo Pasolini, aumentam de maneira inédita a responsabilidade dos últimos, mas decretam como único vencedor o democrata-cristão "mais à esquerda", Fanfani.
O ponto de partida do seu raciocínio é a tese de que a sociedade italiana, com o neocapitalismo que substitui o Estado pelo poder econômico, exige homens "desprovidos de vínculos com o passado (poupança e moralismo); exige que tais homens vivam -do ponto de vista da qualidade de vida, do comportamento e dos valores- em um estado, por assim dizer, de imponderabilidade: o que lhes permite privilegiar, como único ato existencial possível, o consumo e a satisfação de suas exigências hedonistas" (3).
São os democratas-cristãos, com o "cinismo arcaico de católicos arcaicos", e não os comunistas, os que aceitam e assimilam com mais facilidade o cinismo daquela verdadeira revolução antropológica, que, por meio de um "genocídio cultural", eliminou as diferenças e impôs um modelo exclusivo de modo de vida. Por outro lado, os comunistas não sabiam como responder à pergunta que levara tantos italianos à urna: "Quem somos nós, italianos de hoje?".
Para que se cumpra cabalmente o projeto do homem novo italiano, é preciso que ocorra um avanço da desmistificação, da democratização e do progresso. Esse avanço, na ótica da modernização proposta, acompanha naturalmente o desenvolvimento.
E aí entra a necessidade de ressemantização dos conceitos de obediência e desobediência e o redimensionamento da própria atuação de Panella e dos radicais.
Na década de 60, diz Pasolini, a palavra "obediência" indicava ainda o mesmo sentimento que ela tinha significado "durante séculos de Contra-Reforma, de clericalismo, de moralismo pequeno-burguês, de fascismo; ao passo que a palavra desobediência indicava ainda aquele maravilhoso sentimento que incitava à rebelião contra tudo isso. Tudo isso, entretanto, contrariando toda lógica que chamamos de história, foi banido não pela rebelião dos desobedientes, mas por uma nova vontade dos obedientes" (4).
A conclusão é simples: ainda na década de 70, Pasolini alerta Pannella para o fato de que Contra-Reforma, clericalismo, moralismo pequeno-burguês, fascismo, tornaram-se "resíduos" que, em primeiríssimo lugar, perturbam o Novo Poder. E pergunta: "É contra esses resíduos que nós lutamos? E são as normas desses resíduos que nós desobedecemos?".
Passados 20 anos, encontramos Marco Pannella ligado ao neofascista Bossi, uma das forças que levou Berlusconi ao poder. A desmistificação (do homem do humanismo), a democratização (que permite o maior acesso à informação, sem que haja como ou por que controlá-la) e o progresso (significando tecnologização total) criaram o vazio de sentido que permite a ascensão política de uma personagem da nova era.
Isto é, como numa profecia, Pasolini antecipou o que iria ocorrer na Itália contemporânea: aquele modelo político e comportamental que nascia acabaria pondo em risco o sentido do vocabulário e da ação de gerações inteiras as quais, inevitavelmente, passariam a acreditar ter zerado o significado de obediência e desobediência -como provavelmente pensará Pannella, na onda na Nova República, vista como consequência natural do megaprocesso Mani Pulite.
Mas não é só quanto à sociedade italiana que o pensamento radical e negativo de Pasolini mostra-se surpreendentemente atual. Vejamos, por exemplo, como seria possível interpretar a onda americana do "politicamente correto, ou algumas consequências do projeto multiculturalista.
Ao lado de obediência e desobediência, outra palavra era frequente no vocabulário militante da época: tolerância. Numa série de artigos, reunidos na antologia brasileira de textos do autor, com o subtítulo "A Falsa Tolerância Sexual do Novo Poder" (5), Pasolini desfaz a ilusão que parece reaflorar, com outra força e outra cara, nos anos 90. Em particular no que se refere às escolhas sexuais -hoje pensaríamos também nas minorias raciais. Em síntese o escritor dizia que se enganavam aqueles que militavam por uma maior tolerância dos diversos. O homossexual que saia às ruas exigindo tolerância da sua diferença não percebe que nada há de pior do que ser tolerado, que pedir licença para existir. Contudo a tolerância que se vislumbrava nas atitudes e opiniões da maioria poderia ser analisada de duas maneiras.
Pela primeira, o que estava ocorrendo tinha a ver com o movimento geral da cultura, que passava a operar com um único modelo de homem, o consumidor. Vistos de cima para baixo, pensando em lucro, gays, feministas, negros eram iguais, compradores de mercadorias, ao menos, potencialmente; pela segunda, de baixo para cima, a partir do desejo do diverso de poder ter participação como cidadão na vida social e ter reconhecida como legítima sua escolha sexual, poderia estar ocorrendo um equívoco. Quebrar tabus a qualquer custo -foi assim que Pasolini intitulou parte do título de um outro artigo-, deveria levar a pensar num retorno do preconceito, e aí com força total.
A pergunta que se poderia extrair dos textos para projetá-la no futuro é por que justamente quando todos estão cada vez mais parecidos, as minorias acham que sua diversidade foi incorporada, mantendo, porém, as características próprias? Talvez o que realmente estivesse acontecendo -e Pasolini já via os sinais- é a adequação do diverso ao igual, isto é, todos se tornando o casal típico das propagandas esparramadas pelos jornais, revistas, TV etc.
Como interpretar, então, a crença que vai se espalhando de que o uso ou a proibição de algumas palavras que falam, por si mesmas, de tolerância e intolerância possa fazer a revolução dos costumes? Como é que se esquece que o reprimido retorna? De onde vem essa fé cega na linguagem?
A base da crítica social de Pasolini é a da mutação antropológica do homem contemporâneo após o genocídio cultural. É possível discordar, desconfiar dos elementos que o famoso cineasta foi juntando para construir sua tese. Raro é encontrar um pensamento tão vivo, cortante e que nos faça pensar como o seu; mais raro ainda é ver que não precisou deixar de pensar para fazer política, isto é, como intelectual a matriz de seu pensamento é eminentemente crítica e negativa, e, quando todos os modelos e valores de sua geração caíram por terra ou, então, quando os amigos dessa mesma geração tiveram o poder nas mãos, sua atitude nunca deixou de ser polêmica. Talvez por isso tenha transformado a sinceridade num conceito operante. Só assim se tornava possível o exercício radical do pensar.

NOTAS
1. Pasolini, Pier P., "Os Jovens Infelizes - Antologia de Ensaios Corsários" (Brasiliense), pág. 179
2. idem, ibidem, págs. 207-214
3. idem, ibidem, págs. 208-9
4. idem, ibidem, pág. 210
5. idem, ibidem, págs. 145-205

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