São Paulo, domingo, 12 de novembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sherlock Holmes da genética

FABRICE NODÉ-LANGLOIS
DO "LIBÉRATION

"Por favor, não venha me falar do julgamento de O.J. Simpson!" dizia recentemente, irritado, Bruce Budowle, o chefe do serviço de medicina legal do FBI (a polícia federal dos EUA).
Ele participava do 16º Congresso da ISFH (Associação Internacional de Hemogenética Forense), que reuniu a elite mundial das "impressões digitais genéticas em Santiago de Compostela (Espanha) este ano.
Os cerca de 400 biólogos de 40 países estavam reunidos em peregrinação científica, não para comentar o caso do jogador americano -em princípio, pelo menos.
Para os geneticistas convocados pela acusação, no processo mais divulgado do século, o ator e ex-jogador de futebol americano O.J. Simpson é culpado, sem dúvida alguma. Segundo eles, O.J. matou no ano passado a mulher e um amigo dela.
O DNA -substância que carrega as informações hereditárias- encontrado nas manchas de sangue no carro do jogador americano é realmente seu.
"Inocente", retrucam os especialistas em "impressões digitais" genéticas que testemunharam pela defesa. Primeiro, as coletas de DNA foram feitas de qualquer modo, algumas dois meses após os fatos, e, segundo, as análises de DNA não são confiáveis.
"O caso Simpson teve pelo menos um mérito", dizem alguns cientistas. "Trouxe à tona as imperfeições do uso das impressões genéticas na criminologia."
Este ano, o método comemora dez anos de vida. Dez anos de evolução técnica, de crescente automatização e de controvérsias.
Nas mãos dos Sherlock Holmes de hoje, o DNA é uma arma a ser manejada com cautela. E isso desde a primeira etapa: a coleta.
Frequentemente, os pesquisadores, de ambos os lados do Atlântico, são insuficientemente treinados. É fácil um fio de cabelo de um policial misturar-se àqueles recolhidos no local do crime.
Acrescente-se ao coquetel uma gotícula de saliva do funcionário do laboratório, e as pistas correm o risco de ficar seriamente comprometidas. São erros ainda mais inconvenientes quando se emprega a técnica PCR (sigla para "reação em cadeia de polimerase").
Essa técnica consiste em fazer cópias do DNA quando as quantidades recolhidas são insuficientes para praticar a análise. Ao mesmo tempo que se copia o DNA, corre-se o risco de copiar o material genético de bactérias ou fungos.
A seguir, é preciso conservar o material corretamente. Por isso, enquanto se espera até que seja encontrado um suspeito, as amostras são mantidas a temperaturas entre 20 e 80 graus Celsius negativos.
É mais fácil inocentar um suspeito mostrando que seu perfil genético não tem nada a ver com aquele do indicador. Mas a coisa muda de figura quando se trata de demonstrar que dois perfis provêm do mesmo indivíduo.
Nesse caso, ingressa-se no terreno muito mais inseguro das probabilidades. Explicação: a leitura de dois perfis genéticos mostra que o DNA coletado e aquele do suspeito apresentam fragmentos idênticos.
Em uma região determinada do DNA, as duas amostras possuem exatamente a mesma sucessão de "letras", A, C, G, T. Essas letras são as siglas dos quatro tijolos básicos, os nucleotídeos, que formam uma molécula de DNA.
Sabe-se que essa sequência de letras, num local exato da molécula de DNA, só se encontra em um indivíduo em cada 1.000.
Como o sabemos? Analisando o DNA de centenas de pessoas -um pouco como se faz para uma sondagem. Acumulando as frequências de várias sequências de DNA, chega-se a probabilidades de um para vários milhares, ou mesmo vários milhões.
O problema todo é que o "acaso" de encontrar a mesma sequência de letras em dois indivíduos diferentes não é a mesma segundo as raças e as etnias. O sr. X, por exemplo, é branco de tipo caucasiano. Ele é suspeito de ter cometido um estupro. O esperma encontrado na vítima tem 99.999% de chances de pertencer ao sr. X.
Para calcular essa probabilidade, as características genéticas do sr. X foram comparadas às dos caucasianos. Mas o sr. X vem de uma área rural isolada, onde o perfil genético das pessoas apresenta determinadas peculiaridades.
Se a população de sua região tivesse sido tomada como referência, o sr. X teria apresentado um perfil genético bem menos raro, e teria apenas 50% de probabilidade de ser o autor do estupro.
Mesmo sem falar das populações-referência, a questão das probabilidades continua sendo espinhosa. Em 1992, a Suprema Corte alemã recusou-se a condenar um homem apenas com base em sua análise genética.
Segundo os especialistas, havia 99,986% de chances de que o homem fosse culpado de um estupro. Os juízes do tribunal de Karlsruhe observaram que, aplicados à população masculina de Hanover, onde o crime ocorrera, os 0,014% de incerteza significavam que 35 indivíduos poderiam apresentar o mesmo perfil genético do acusado.
Esse tipo de hesitação não parece ser sentida na Inglaterra, onde a polícia britânica está elaborando o maior arquivo genético do mundo.
O banco de dados regional da Polícia Metropolitana de Londres, criado em 1990, já permitiu resolver algumas dezenas de casos, notadamente a de crimes em série. "Isso é perda de tempo", diz o especialista californiano Edward Blake. "É um artifício dos laboratórios para conseguir créditos".
Um número suficientemente significativo para justificar os bancos de dados, responde Bruce Budowle, do FBI. O único problema é que, dentro de alguns anos, um arquivo nacional poderá ser jogado fora, se surgirem novas técnicas.
O temor de que a "carteira de identidade" genética das pessoas possa cair nas mãos da polícia é, por enquanto, infundado.
Só se conhecem 75% do genoma humano, e as "impressões digitais" genéticas são feitas sobre minúsculas regiões do DNA, que em sua maioria não são responsáveis por nenhuma característica genética.
Outra dúvida seria: quem fichar? Apenas os condenados (como faz o FBI), toda pessoa suspeita (como se faz na Inglaterra) ou a população inteira, como nos sonhos (ou pesadelos) de algumas pessoas?
O temor compartilhado por todos os laboratórios é que os policiais venham, cada vez mais, a lhes pedir análises obtidas ao acaso; ou seja, que, antes de apresentar os suspeitos, eles esqueçam o essencial: a investigação.
As técnicas usadas para obter "impressões digitais" genéticas se baseiam sobretudo na parte da molécula de DNA que não é responsável por nenhuma característica genética, ou seja, a região ainda misteriosa de nosso genoma onde as sucessões de nucleotídeos (A, T, C, G) não se constituem em genes. Genes são os trechos do DNA que respondem por uma informação genética.
Essa parte possui uma arquitetura peculiar: a sequência de nucleotídeos se repete, mas não o mesmo número de vezes, segundo o indivíduo.
Imaginemos que o DNA fosse um colar de pérolas. Diríamos, então, que todas as pessoas possuem pérolas vermelhas em seu colar, mas algumas têm apenas uma, outras, duas, três ou dezenas.
À medida que as técnicas avançam, são identificados diferentes tipos de pérolas (localizações precisas no DNA) que permitem que se diferenciem os indivíduos, mais ou menos bem.
Sabe-se também estudar as pérolas mais pequenas, graças a uma técnica chamada STR (descoberta em 1994), que permite o estudo de uma amostra muito pequena ou danificada, um pouco de saliva, um fio de cabelo.
A técnica STR é difícil de realizar e discrimina menos do que as outras: ela estuda motivos mais presentes na população do que a técnica mais comprovada, conhecida como RFLP (sigla para "polimorfismo de fragmento de restrição").
Essa técnica, mais confiável, permite isolar segmentos do DNA constituídos de sequências de seis a 20 "letras" repetidas um número dado de vezes, segundo os indivíduos. A técnica pode levar semanas para ser efetuada, contra 24 ou 48 horas para os métodos mais rápidos.

Tradução de Clara Allain

Texto Anterior: CARNE; XINGU; ETOLOGIA; PALAVRA
Próximo Texto: Domingo musical começa cedo em SP
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.