São Paulo, quarta-feira, 15 de novembro de 1995
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Iraniano 'Através das Oliveiras' vence má copiagem

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Esses inconvenientes prejudicam seriamente trabalhos que têm a exatidão como princípio. É o caso, também, em que se encontram os filmes de Abbas Kiarostami.
Há um terceiro obstáculo ao prazer de assistir a este filme, no mais notável. Kiarostami desenrola suas histórias um pouco à maneira de Sherazade. Primeiro, ele fez "Onde Fica a Casa do Meu Amigo?", que era a história de dois meninos, alunos de uma escola no norte do Irã.
Em 1990, houve um grande terremoto na região. Kiarostami filmou então "E a Vida Continua", em que um cineasta e seu filho partem em busca de sinais de vida dos dois jovens atores do filme anterior.
"Através das Oliveiras", de 1994, retoma uma ramificação do trabalho anterior. Aqui, vemos um diretor de cinema escolher atores para um filme ("E a Vida Continua", justamente).
Ele encontra um rapaz e uma moça que farão o papel de marido e mulher. Na vida real, porém, os atores têm um problema. Eles se amam, mas são de classes sociais diferentes. Ou seja, a moça sabe ler e tem casa; o rapaz é analfabeto e mora em uma tenda (sua casa foi destruída pelo terremoto).
O amor entre os dois é interditado por regras segundo as quais o homem e a mulher devem pertencer a uma mesma classe social para poderem se casar. Mas uma grande tensão atravessará toda a narrativa, em torno de uma questão: cederá ela aos apelos do jovem ou não?
Ora, essa é em larga medida uma falsa (embora bela) questão. Na verdade, o trabalho cinematográfico de Kiarostami consiste em acoplar dois níveis de realidade: o da representação (o filme que está sendo rodado) e o da realidade (a história dos apaixonados). Ora, este segundo nível não é tão inocente quanto possa parecer. O que chamamos de "realidade" já é -no momento da filmagem- uma nova ficção. O cinema, parece nos dizer Kiarostami, está condenado a nunca chegar à realidade, por mais realista que seja.
Mas, se realidade referencial (exterior ao filme) sempre escapa, existe uma outra hipótese: a de construir uma realidade a partir do diálogo entre esses referenciais e o que se produz diante das câmeras.
Em suma, é ao remeter uma à outra, que Abbas Kiarostami articula um jogo de espelhos que não será exagero chamar de magistral. É na medida em que põe em dúvida o estatuto do cinema como arte capaz de captar a realidade que o autor iraniano se eleva ao ponto mais alto desta arte e se afirma como um dos grandes (talvez o maior) cineastas contemporâneos.
Em "Através das Oliveiras", num primeiro momento o cinema é colocado nesse espelho. No instante seguinte, é o espectador que se vê refletido nas imagens que correm à sua frente. Essa arte de espelhar a realidade e de criar, a partir da duplicação dos seres, um novo estado das coisas, é a contribuição maior de Kiarostami. É o que leva o espectador a esquecer até as deficiências da tela pequena e da copiagem em vídeo.
Existe, ainda, uma outra questão. Ao colocar a tensão que atravessa as relações entre os namorados, Kiarostami está, obviamente, falando do Irã. Falando da tensão entre a tradição (casamento arranjado, impermeabilidade de classes sociais) e uma modernidade possível. Esse viés com certeza interessa menos ao espectador brasileiro. Mas, pela arte que ali está implicada, interessa muito mais do que nada.

Vídeo: Através das Oliveiras
Produção: Irã, 1994
Direção: Abbas Kiarostami
Elenco: Hossein Rezai, Mohamedi Ali Keshavartz, Tahereh Ladanian
Distribuição: Video Arte do Brasil (tel. 011/575-6996)

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