São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Pelé tem o direito de emitir sua opinião

ALBERTO HELENA JR.
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Já contei o caso do crioulo parrudo, enfezado, que levava o timão alvinegro gravado em fogo no coração ao Pacaembu para ver seu Corinthians sofrer diante do Santos de Pelé. Para ver, não. Para não ver, pois o crioulo passava o jogo todo de costas para o campo, guiando-se pelo marulhar da torcida, que sempre desaguava numa torrente de gols do rei.
E o crioulo, ali, de costas, olhos cerrados, murmurando: "Deus, por favor, eu imploro: quebre as pernas desse negão. Uma só, não. As duas, Deus, as duas!"
Mas Pelé tinha o corpo fechado: algumas pernas que cruzaram seu caminho se partiram; as dele, nunca. Agora, há quem queira arrancar-lhe a língua, que se tornou afiada com a idade e o ilustre cargo.
Naquele tempo, ao contrário, queriam vê-la solta e viperina, chicoteando as trevas do regime militar ou reivindicando um espaço digno para o negro brasileiro.
E Pelé, ali, mudo. Só abriu a boca para dizer que o povo não sabia votar, o que, na época, soava como um sonoro aval ao regime militar da personalidade brasileira mais conhecida e amada no mundo, num instante em que muitos anônimos pobres diabos davam suas vidas, literalmente, para que o povo pudesse recuperar seu pleno direito ao voto.
Naqueles tempos, Pelé inaugurara um novo jeito de se expressar, falando de si na terceira pessoa. Não no tom majestático ou papal, nem na forma irreverente usada mais tarde por Dadá Maravilha.
Ele deixava bem claro que Pelé era um e Edson Arantes do Nascimento, outro. Como se fossem duas personalidades distintas, quiçá duas entidades com vidas paralelas. Pelé tinha um variado, rico e mágico repertório de jogadas nas quatro linhas; Edson, fora do campo, limitava-se a cumprir as regras do bom-tom, o que, convenhamos, não deve ser pouco para alguém que, aos 17 anos, foi encerrado numa redoma de cristal, ouro e prata.
Hoje, o ministro Pelé abandonou essas filigranas e diz que negro deve votar em negro. É uma tese, diria o conselheiro Acácio. (Ou teria sido algum conselheiro de plantão que lhe soprou ao ouvido a oportunidade de marchar com Zumbi, no momento em que se resgata a memória do herói negro dos Palmares?). E, como tal, passível de discussão. Pois uma coisa é certa: tanto Pelé quanto o cidadão Edson ou o ministro Pelé do Nascimento, todos têm o direito de emitir suas opiniões. Assim como os demais de refutá-las.
Por mim, prefiro fazer um minuto de silêncio por todos os zumbis negros, mulatos, brancos, mamelucos ou cafuzos que deram suas vidas para que Pelé pudesse ser ministro de um governo legalmente eleito pelo povo, e, livremente, dizer o que pensa. E ouvir o troco.

Uma retificação, a tempo: Flávio Costa ficou, do final dos anos 30 a meados dos 40, oito anos seguidos como técnico do Flamengo. Portanto, os cinco anos de Telê no São Paulo não são um recorde histórico, como afirmei outro dia aqui.
Quem me adverte é o sempre solerte Mário Magalhães.

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