São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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Exercícios de divergência

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Dentro do quadro atual da poesia brasileira, o aparecimento de "O Livro Diverso - a Peleja dos Falsários", é um fato que merece atenção. Se, por um lado, ainda não traz a marca registrada da obra-prima, reivindica um lugar de destaque. Os versos de Bernardo de Mendonça são diversos; diferentes vozes, métricas e paisagens.
Desde o início, a obra se impõe por esse aspecto divergente e fora do lugar. A simples opção pelo poema narrativo já o lança na contramão da produção poética vigente. Como se não bastasse, envereda pelas vertentes heréticas do romance popular. Em outras palavras, utiliza recursos poéticos que estão caindo em desuso.
O empobrecimento das técnicas do verso, a rarefação do assunto e a ausência de repertório é uma marca do nosso tempo. Padecemos do raquitismo do haicai, do esgotamento da herança concretista, da retórica do poema-piada, do debate viciado por patronatos e patrocínios. A poesia brasileira nunca esteve tão próxima das práticas da vida política nacional: nunca houve tanto lobby, tanto corporativismo (vide o "trem da alegria" concretista que foi participar da 3ª Bienal de Poetas em Val-de-Marne). Nesse caso, o mais prejudicado, "desempregado e sem-terra", é o leitor.
Como um pequeno antídoto para o momento que atravessamos, acho que todo poeta deveria reler dois ensaios de João Cabral de Melo Neto: "Poesia e Composição" (1952) e "Da Função Moderna da Poesia" (1954). A lição cabralina é cortante: "O poeta se isola da rua para se fechar em si mesmo ou se refugiar num pequeno clube de confrades. (...) Na sua literatura existe apenas uma metade, a do criador. A outra metade, indispensável a qualquer coisa que se comunica, ele a ignora. Ele se julga parte essencial, a primeira, do ato literário. Se a segunda não existe agora, existirá algum dia - e ele se orgulha de escrever para daqui a 20 anos. Mas ele esquece o mais importante. Nessa relação o leitor não é apenas o consumidor. O consumidor é, aqui, parte ativa. Pois o homem que lê quer ler-se no que lê, quer encontrar-se naquilo que ele é incapaz de fazer".
Deixando para trás essas digressões de ordem geral, vejamos como Bernardo de Mendonça se aproveita do romance popular e na condição de narrador descreve um encontro entre o poeta pernambucano Ascenso Ferreira (1895-1965) e o paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), em Leopoldina, Minas Gerais. Depois de instaurada a verdade "fabulada" -"A noite abóia/ todos os Ascensos/ pelo pasto grande/ e sujo do tempo.// O poeta dorme,/ máscara na cara,/ a terrível máscara/ de um velho enorme."- a veracidade do encontro e a identidade dos poetas é posta em xeque.
Estamos no centro de uma peleja de falsários. Ascenso Ferreira dispara: "Augusto dos Anjos? Arbusto dos diabos,/ expulso do inferno/ com um chute no rabo./ O poeta o repele:/ Augusto dos Anjos/ não é este viado!". No final do poema, após um longo teste-à-tête, é a vez de Augusto dos Anjos cuspir sua cólera: "Aquela canalha/ na mesa do lado/ é só de impostores,/ sobretudo esse/ que estava aqui,/ contando vantagem,/ dizendo besteira;/ aquele farsante/ (com perdão da rima)/ não é nem de longe/ Ascenso Ferreira".
"Livro Diverso" foi arquitetado para ser lido como uma longa viagem que vai de Leopoldina até a praia da Avenida, em Maceió. Passa rio, passa boi, passa piada. Sem afetação, encontramos vários registros da experiência poética. Em alguns momentos, o autor tematiza seu próprio fazer, como no "ABC e Contas do Versejador": "Que o poeta mande/ a soberba à merda/ e vá para o eterno/ com um naco de inferno".
Bernardo de Mendonça, aos 45 anos, é responsável por um dos bons livros de poesia publicados recentemente. E espero que este juízo não seja vítima de uma parolagem da fraude.

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