São Paulo, domingo, 19 de novembro de 1995
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O resgate dos ideais de Zumbi dos Palmares

BENEDITA DA SILVA

O Brasil celebra neste 20 de novembro os 300 anos da morte de Zumbi, líder político do Quilombo dos Palmares. O primeiro grito de liberdade ecoado no novo mundo foi dado por Zumbi, que pagou com a própria vida por ter ousado construir, na Serra da Barriga, em Alagoas, a República de Palmares, onde conviveram em liberdade escravos fugidos, índios e brancos pobres.
Ao contrário do Brasil escravocrata do século 16, Palmares surgiu como uma sociedade multirracial e pluricultural, e assim perdurou por cerca de cem anos, sob liderança negra, representando uma alternativa à exploração e desumanização a que estava submetido o negro escravizado.
A democracia quilombola exerceu, dentro e fora de seus limites, o mais amplo processo de liberdade com dignidade, construindo uma sociedade livre do preconceito, sem opressão de raça nem de gênero, uma sociedade renovada onde a exclusão do preconceito e do racismo foi uma realidade. Do ponto de vista étnico e político, foi a única democracia racial de que se tem notícia em solo americano.
Essa referência de resistência e luta por dignidade e igualdade, que deve ser de todo o povo brasileiro, não apenas dos negros, ainda representa uma página pouco estudada em nossa historiografia. Sobre Palmares e sobre a caçada humana que se promoveu contra Zumbi, a maioria dos indícios e documentos desapareceram, por conta da escassez dos relatos e dos próprios documentos.
Além disso, o pouco que resta não desperta o interesse da maioria dos historiadores, razão pela qual consideramos que o resgate dos ideais histórico-políticos de Zumbi e de Palmares ainda está por fazer, pois, como tantos outros quilombos, Palmares é uma das principais contribuições do povo negro para a formulação dos ideais de democracia e da capacidade de superar as desigualdades.
O ano de 1995 -Tricentenário da Imortalidade de Zumbi dos Palmares- deve ser visto como o marco zero da cidadania do povo negro, o início da reconstrução da cidadania que Zumbi promoveu. Hoje, existe a certeza de que Palmares foi uma experiência sem precedentes nas Américas.
A palavra de ordem, neste 20 de novembro, é: vamos reescrever nossa história, reconstruindo a história do cidadão negro a partir do legado de Zumbi.
O saudoso professor Florestan Fernandes, um aliado da luta contra o racismo, nos ensinou que: "Se quisermos possuir uma República democrática, temos de atribuir ao negro, como indivíduo e coletividade, um estatuto democrático. O negro tornou-se o teste número um da existência da universalidade e da consistência da democracia no Brasil".
Podemos afirmar, portanto, que o processo de desenvolvimento nacional só se completará com a superação das desigualdades históricas impostas ao povo negro. Não é possível construir um projeto de nação e de cidadania sem levar em conta a marginalização de grande parte dessa população.
Neste 20 de novembro, quando também se comemora o Dia Nacional da Consciência Negra, porque Zumbi é a principal referência dos oprimidos de todas as raças e classes e, principalmente, da consciência negra brasileira, estaremos realizando, em Brasília, a "Marcha Contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida", ocasião em que serão entregues ao presidente Fernando Henrique Cardoso, em audiência, reivindicações que serão, a partir de agora, a mola mestra, o motor da luta pelos direitos dos negros, como a implementação de políticas públicas de combate ao racismo, capazes de enfrentar a situação de pobreza, de violência e marginalização, do desemprego, distribuição de renda, da saúde de homens e mulheres negros.
O preconceito racial leva à exclusão social e, consequentemente, há perdas e danos. Por isso é importante promover a modificação dos currículos escolares para introduzir o ensino da história da África, que é a raiz do povo brasileiro, o berço dos nossos ancestrais; promover a titulação das terras dos remanescentes de quilombos, como determina a Constituição Federal; promover o resgate da imagem do negro nos meios de comunicação, garantindo a visibilidade dos negros na sociedade brasileira; promover a igualdade de oportunidades e a participação efetiva nas universidades e no ensino fundamental.
Cumprir e fazer cumprir as leis de combate às discriminações, que compreendem a própria Constituição e a legislação complementar, além das convenções internacionais como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial; a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre a discriminação em matéria de emprego e profissão e, mais recentemente, as resoluções da Quarta Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em Pequim, cujas conclusões incluem a temática racial, as variáveis de raça e etnia nos documentos oficiais, que são a Declaração de Pequim e a Plataforma de Ação.
O Congresso Nacional está aceitando o desafio do resgate da cidadania do povo negro. É importante, também, respaldar as iniciativas do Poder Executivo e do Poder Judiciário que caminham nesse sentido.
Não pode haver comemoração mais digna de Zumbi dos Palmares do que o compromisso com o resgate da cidadania e com as transformações das condições de vida do povo negro.
Zumbi não morreu. Vive em cada um de nós, que percorre o caminho da liberdade, da igualdade e da justiça, iniciado por ele há mais de 300 anos.

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