São Paulo, terça-feira, 21 de novembro de 1995
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Nelson Rodrigues fala no telefone astral

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

- Alô?
- Rapaz, você atendendo ao próprio telefone, como um contínuo de si mesmo? (Erra o Nelson Rodrigues. De vez em quando, ele me telefona do céu pelo seu velho telefone preto de ebonite)
- Que posso fazer, Nelson, não sou rico como você...
- Rico nada, rapaz, se você vir um sujeito tocando acordeom na rua do Ouvidor, pode dar esmola que sou eu...
(Todos nossos telefonemas começavam assim, quando ele era vivo. Continuamos com a tradição)
- E aí, Nelson, como está aí em cima?...
-Estou caprichando...caprichando...
- Que que você está achando do Brasil?
- Rapaz, "o" Brasil não existe", "o" Brasil é uma ilusão... Que Brasil?
- Sei lá, o governo...
- Acho que o Fernando Henrique tem um perfil de medalha. Ele nasceu para ser a cara da coroa da moeda. Mas, acho que ele está em fremente lua de mel consigo mesmo...
- Como assim?
- Feito o Guimarães Rosa. Quando eu encontrava ele na rua, satisfeitíssimo consigo mesmo, eu dizia: "João, não seja tão Guimarães Rosa... O Fernando Henrique está acreditando demais no próprio sorriso. Ele tem de inspirar medo também. Consciência política de brasileiro é medo da polícia. Você acha que o Euler Ribeiro tem medo de quê? Só dos eleitores e do Amazonini... Eles estão adorando chantagear o Fernando Henrique porque ele é intelectual. Eles têm uma inveja danada dele. Fernando tem de fazer como o Luís Eduardo Magalhães: mais severidade. Aliás, estou gostando deste rapaz. Achava que era filhinho do papai, mas não; é um homem. Sabe tratar com os pequenos canalhas. Se bem que há poesia nos pequenos canalhas e nos cretinos fundamentais. São brasileiros como o Saci-Pererê. Mas, com eles, só o medo funciona. São muito piores que os "inimigos" estrangeiros. O pequeno canalha é o cupim do Brasil.
- E o teatro, que você está achando do teatro?
- Rapaz, não há mais dramaturgos no Brasil. Eles estão sendo exterminados a pauladas feito ratazanas grávidas. Se o sujeito diz que é dramaturgo, chamam logo o "rapa". Só existem os diretores. O diretor pode tudo. O dramaturgo vive amarrado ao pé da mesa, bebendo água na cuia de queijo Palmira. Já o diretor, anda de penacho e esporas de dragão da independência. Outro dia eu vi uma peça minha em que as pessoas ganiam, rolavam no chão com arranques de cachorro atropelado. Que acontece? As novas gerações pensam que eu sou ou um pornógrafo ou uma besta. O teatro virou uma missa leiga, em que o padre equilibra bolas no nariz como uma foca profissional. Hoje, só tem pecinha para caçar níqueis ou coisas "eruditas" demais, feitas por diretores que têm uma profundidade que a formiga atravessa com água pelas canelas. É um caso sério.
- E a esquerda, Nelson?
- Estou com uma nostalgia brutal pela esquerda antiga. Que saudades do meu amigo Vianinha, que era um Byron da cabeça aos sapatos... Mesmo você, que participava de passeatas contra a fome chupando Chicabon. Tenho saudades do d. Helder, apesar dos pés de bode que a batina roxa escondia. Ele era muito melhor que este Von Helder que chutou a santa. A esquerda está no tempo do Olavo Bilac. Adoro o PC do B. Parece uma igreja. O PC do B está iluminado de fé. É lindo, me lembra uma tenda espírita, em que o Stálin baixa às vezes com a vozinha fina de caboclo infantil. Mas, gosto muito do João Amazonas; parece um santo de vitral varado de luz. Gosto também da coisa dramática e desengonçada da Jandira Feghalli; ela daria uma boa atriz para "A Falecida". Já o PT... tenho pena do Lula... tão inteligente, prisioneiro dos cretinos fundamentais. Você sabe que hoje em dia, se um cretino fundamental sobe num caixote de querosene Jacaré, na mesma hora aparecem milhares de cretinos para ouvi-lo. Antigamente, o cretino se escondia pelos cantos. Hoje, andam de fronte alta.
- E os sem-terra?
- Taí. Gosto dos sem-terra. Tem canalhas no meio, mas eles são tão bonitos... Parecem camponeses do "Angelus de Millet", devem ter alguma razão.
Mas, rapaz, estou triste é com o Rio. Outro dia fui tomar um cafezinho bem carioquinha ali perto na rua de Santana, e vi que o Rio perdeu o cafajeste poético. Nossos vagabundos, nossos malandros perderam o halo de luz. Estão tristes. O carioca lírico desapareceu... O Rio era um feriado. O Rio era um sábado. Hoje, todo mundo correndo de medo...
- E o futebol?
- Entro em cava depressão quando vejo o nome da Hyundai, rapaz, marca de carro coreano no peito dos jogadores do Fluminense. Não me conformo com estas camisas sagradas sendo usadas para propaganda: Kalunga, Lubrax, que coisa triste... O futebol não é reclame. Tenho vontade de sentar no meio fio e chorar lágrimas de esguicho... Mas, pelo menos, há uma beleza nos jovens jogadores da seleção. A bola os segue como uma cachorrinha fiel segue o dono.
- E a literatura, Nelson?
- Rapaz, o que estraga a literatura brasileira é que nenhum escritor sabe bater um escanteio. É isso. Todo mundo quer ser genial. O único livro genial que eu li ultimamente aí foi "Os Desvalidos" do Francisco Dantas, um sergipano. É um Rosa sem máscara, um Graciliano afetivo. Ninguém fala nele. O José Lino Grunewald devia ler.
- E a pós-modernidade...?
- Que é isso?
- É... sei lá... é o fim das utopias... a falta de esperança...
- Ihh... rapaz... o mundo sempre foi pós-moderno. Este negócio de esperança é uma invenção de intelectual francês. Tudo sempre foi ilusão. Nunca houve esperança. Vocês deviam se abaixar e beber na sarjeta da pós-modernidade... A desesperança é a salvação dos intelectuais. Você veja o Marx. Ele era genial onde ninguém achava. Marx dava uma importância danada aos botequins e aos bifes da Alemanha. E quiseram fazer dele o deus da esperança. Que nada, Marx sempre foi pós-moderno...
- Poxa, Nelson, você está muito deprimido... nem aí no céu...
- Que nada, rapaz. Estou achando o Brasil ótimo, justamente porque perdeu as ilusões. Agora é que vai ficar bom. O brasileiro estava precisando perder a pose. Nos últimos anos, caiu nossa máscara. Mas, agora está na hora de gostar de si mesmo de novo. O brasileiro odeia a própria imagem como um narciso às avessas. Ele quer ser americano, húngaro, o diabo. O brasileiro só se moderniza se assumir a própria miséria, a própria cara. Se o brasileiro assumir a própria cara ele vira um rei, de coroa e cetro tropeçando no manto de arminho.
É isso aí...
- Você telefona quando, Nelson?
- Sempre que você começar a escrever coisas metidas a profundas, eu telefono. Assuma sua ignorância, sua cretinice de brasileiro. Não seja inteligente, rapaz; seja burro, seja burro. É a sua salvação!
- Obrigado, Nelson.

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