São Paulo, quarta-feira, 22 de novembro de 1995
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'Cortina de Fumaça' retrata gente comum

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

No cinemão convencional americano, os personagens são objetos unidimensionais que se encaixam com outros objetos unidimensionais para servir a uma fórmula a que chamamos "trama".
Em "Cortina de Fumaça", os autores Paul Auster (roteirista) e Wayne Wang (diretor) fazem quase o oposto: para dar volume e densidade a seus personagens, desenham uma trama rarefeita e episódica. A história não é uma engrenagem que aprisiona e conduz; é, ao contrário, o resultado da múltipla interação de caminhos individuais traçados um tanto pelo desejo e outro tanto pelo acaso.
O elemento de "amarração" dessa teia de trajetórias pessoais é geográfico: a tabacaria de Auggie Wren (Harvey Keitel) no Brooklyn, em Nova York.
É por ali que passa cada um dos personagens do filme: o escritor Paul Benjamin (William Hurt), em estado sonambúlico desde que perdeu a mulher; o garoto negro Rashid Cole (Harold Perrinau Jr.), que procura o pai foragido (Forrest Whitaker) e é procurado por assaltantes; a ex-vamp Ruby McNutt (Stockard Channing), às voltas com uma filha viciada em crack...
A exposição e o entrelaçamento desses pequenos dramas não obedecem ao ritmo e ao "afunilamento" narrativo dos filmes convencionais. Há, pelo contrário, uma aparente dispersão narrativa -como quando um contador de histórias parece se perder nos detalhes e digressões-, uma distensão do tempo de cada episódio.
Essa concentração em detalhes que seriam considerados acessórios num drama convencional é o que confere a "Cortina de Fumaça" um inusitado frescor realista.
Há uma cena que poderia servir de chave para a abordagem do filme. Auggie Wren mostra seus álbuns fotográficos ao escritor Paul Benjamin. São centenas, milhares de fotos tiradas diariamente, à mesma hora, no mesmo local: a esquina em que fica sua tabacaria.
O escritor diz: "Mas são todas iguais". Wren lhe mostra então que não: em cada uma delas a luz incide de um modo diferente, são outros automóveis, outros rostos a caminho do trabalho, da escola, do bar. Cada foto é todo um mundo particular e irredutível.
O escritor só compreende plenamente essa idéia ao deparar, numa foto, com a imagem de sua mulher, que morrera anos antes. A identificação, súbita e comovente, de um dos inúmeros rostos captados pela câmera de Wren, age literalmente como uma revelação. Entendemos de imediato que cada um daqueles rostos esconde uma identidade, uma vida, um drama.
O humanismo de Auster e Wang consiste nisso: mostrar que não existe nada mais interessante no mundo que um rosto humano, qualquer rosto humano, com sua história subterrânea de provações e prazeres. Vale por um curso de reeducação da atenção e do olhar.
Em tempo: os autores tentaram prolongar o encanto de "Cortina de Fumaça" usando a mesma locação e parte do elenco na continuação "Sem Fôlego". Mas a magia, fugidia como a própria fumaça, já havia desaparecido.

Vídeo: Cortina de Fumaça (Smoke)
Direção: Wayne Wang
Elenco: Harvey Keitel, William Hurt, Forrest Whitaker, Harold Perrinau Jr.
Lançamento: Playarte (tel. 011/575-6996)

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