São Paulo, sexta-feira, 24 de novembro de 1995
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O Sivam e as "forças ocultas"

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

No Brasil sempre foi assim. O maior aliado da razão é a banalidade. Toda a argumentação contra o megalômano Acordo Nuclear Brasil Alemanha de nada serviu. O acordo foi finalmente derrotado pela incompetência empresarial instalada na Nucleobrás. A tresloucada Transamazônica foi varrida pela chuva e pelo borrachudo. A transposição das águas do São Francisco foi esvaziada pelo simples cansaço do povo brasileiro com o faraônico. A monumental Ferrovia do Aço descarrilhou por falta de carvão. E assim talvez venha a acontecer com o Sivam.
Quem se deteve naqueles almanaques farmacêuticos dos anos 40 se lembrará de uma charge muito popular à sua época. Dois jumentos, atados cada um a uma das extremidades de uma corda, se esforçavam em direções opostas para alcançar montículos de capim colocados a uma distância um pouco maior do que o comprimento da corda.
O Sivam talvez vá para os ares só porque os seus vorazes parasitas não se entendem entre si. Pois é, a acusação do brigadeiro Gandra de que o Sivam tem muitos inimigos é mal colocada. A verdade é que o Sivam tem amigos demais. E tão dedicados que não querem compartilhar, exatamente como os tais jumentos populares na década de 40.
Para melhor compreender a questão do Sivam, porém, convém relembrar a gênese do projeto. Na gíria do setor são chamados "Datas" ou Cindatas os três sistemas de proteção ao vôo que cobrem todo o Brasil, exceto a Amazônia. Foram instalados pela Thomson, empresa francesa, com auxílio de um punhado de empresas nacionais e sob a coordenação da Esca, a escatológica simbiose empresarial entre o Ministério da Aeronáutica e seus oficiais reformados.
O envolvimento dessa empresa nos casos anteriores costumava ser justificado pela necessidade de o Brasil se apropriar progressivamente das tecnologias envolvidas. Em outros países essa missão é ordinariamente assumida pelos próprios órgãos do governo, responsáveis pelos serviços. No Brasil, parece que os órgãos de governo são incapazes de absorver tecnologia. Seria escassez de neurônios?
Uma banalidade, um acontecimento completamente externo à questão técnica, uma falsidade ideológica cometida pelos dirigentes da Esca liquidou a empresa. Mas o projeto continuou. Afinal, quem trapaceia com o INPS não trapaceia necessariamente na elaboração de contratos faraônicos com o governo. Mesmo quando não há licitação.
O Sivam agrega, além da proteção ao vôo, as funções de vigilância ao contrabando, principalmente ao narcotráfico, de proteção ao meio ambiente e de prospecção de recursos naturais. Ora, essas atividades, exceto o controle do contrabando, já estavam em andamento no Brasil. Mesmo porque a montagem do Sivam, como todos os técnicos do setor reconhecem, absorveu os projetos cujos programas estavam vigentes.
A proteção ao vôo, se extrapolarmos custos dos Cindatas anteriores, não custaria mais do que US$ 300 milhões. Almoços modestos não distribuem sobras. Projetos pequenos, mas que ultrapassam orçamentos regulares de ministérios, nunca são aprovados. Banquetes, por outro lado, aceitam comensais adicionais.
Então, sabiamente, os autores do projeto agregaram aliados. É mais fácil aprovar um projeto de US$ 1,4 bilhão do que um de US$ 300 milhões. E também é mais fácil conseguir um financiamento internacional, principalmente quando este serve para salvar uma Raytheon da vida, empresa essencial à segurança nacional americana, colocada em suspensão pelo fim da Guerra Fria.
Era portanto necessário inchar o projeto que originalmente seria o Data 4. E assim nasceu o Sivam. E com isso todo mundo sairia ganhando.
Mas eis que o sr. Clinton falou demais. Anunciou que o Sivam criaria 20 mil empregos de base tecnológica nos EUA. Com isso, alguns técnicos brasileiros começaram a refletir. Se vai criar lá 20 mil empregos para realizar o que já está sendo feito no Brasil por brasileiros, então os programas nacionais serão desativados. Perderemos empregos e tecnologia já apropriada.
Mas como a repressão branca neste governo é pesada, poucos se exprimiram diretamente. Todavia, um esquema de pressão sobre o Congresso Nacional foi montado. Estas são as tais "forças ocultas, inimigas do Sivam", alguns técnicos amedrontados, uma oposição no Congresso dizimada pelo "poder de compra" do Executivo e uma imprensa nem sempre adequadamente informada, mas procurando acertar.
Forças ocultas porque temem se expor, temem tanto ou mais do que ocorrera durante o regime militar.
Mas esse acontecimento é exemplar. Um projeto postiço, um monstrengo tecnológico, uma espécie de Frankenstein canhestramente montado às pressas não poderia deixar de gerar escândalos. Se tecnicamente estivesse correto, se respondesse adequadamente às necessidades prioritárias nacionais, se representasse gastos essenciais e economicamente justificáveis, não haveria espaço, sobras para os eternos abutres se engalfinharem. Não despertaria a ganância desses oportunistas se fosse um programa sério. Mas é tão suculento e abundante que sobra para muita gente.
Esse é o verdadeiro problema. Ou será que era por patriotismo que o sr. Júlio César aliciava apoio para o projeto? E como toda podridão exala catinga, o Sivam acabou atraindo um número excessivo de chacais. A ameaça velada do representante da Raytheon no Brasil ao relator do projeto no Senado de sabotar seus aviões e helicópteros, mais que as cândidas conversas com o embaixador, merece um filme de gângster.
Se não está o congressista mentindo, ele teve sua vida ameaçada. Será que estamos na Chicago da Lei Seca? Será que perdemos, todos nós, a capacidade de indignação? Ou será que a história está para se repetir? Antes de completar um ano a administração Collor também veio a público o escândalo da compra de bicicletas sem licitação. E também caiu um ministro, o da Saúde. E agora, também sem licitação, estoura o escândalo do Sivam. Só que uma centena de bicicletas não custa US$ 1,4 bilhão.
Cai o ministro da Aeronáutica e é afastado o embaixador lobista e amigo do presidente. Mas o âmago da questão não é tocado. O fulcro da corrupção é a própria natureza do Sivam. Sua inutilidade, sua artificialidade perversa.
Enquanto existir continuará corrompendo o seu meio ambiente. Essa é uma afirmativa que não precisa ser demonstrada, basta examinar os hábitos dessa plêiade de "amigos" do Sivam e lembrar que o presidente FHC vê o projeto apenas como um meio de adular o coleguinha Clinton. Mas não deixa de ser uma infelicidade para o Brasil que projeto dessa estirpe possa vir a ser derrotado porque seus sanguessugas não têm inteligência para se entender.

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