São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Zumbi de Norte a Sul

J. MICHAEL TURNER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O tricentenário da morte (ou suicídio) de Zumbi, líder da comunidade de escravos fugitivos criada no século 17 no território de Alagoas e Pernambuco, é a data adequada para refletirmos sobre a ressonância e o vínculo simbólico direto entre o ideário dos Palmares e alguns fatos tão recentes quanto a Marcha de 1 Milhão de afro-americanos realizada em outubro em Washington.
No espírito e na idéia dos Palmares, bem como na visão e na liderança de um Zumbi, existe o desafio inerente lançado a um sistema político, econômico e social que sempre exerceu um impacto negativo sobre os pobres, os povos indígenas e os descendentes de africanos.
Ao dar combate à milícia colonial e aos proprietários de terra portugueses, ao resistir com êxito às forças de ocupação holandesas enviadas de Recife e ao pôr em xeque, ainda que temporariamente, o poder da raça mestiça dos bandeirantes, a República dos Palmares desafiou, por sua própria existência, o paradigma colonial clássico imposto ao Brasil.
Os assustados proprietários das terras vizinhas, depois de fracassarem na captura de escravos fugidos ou na recuperação de bens roubados e de organizarem sem sucesso incursões militares contra a república serrana, chegaram à conclusão de que o cerco e o acordo eram os métodos mais razoáveis para lidar com a ameaça dos Palmares.
Por outro lado, a disposição da república negra de entrar em negociação (ainda que sumária) com os fazendeiros locais demonstrou que a estratégia política da comunidade era capaz de desconsiderar o fator da identidade étnica. Exemplo disso é a devolução de alguns escravos a seus antigos donos, como resultado de acordos firmados com os proprietários de terra. Tal fato demonstra uma sofisticação política ou mesmo uma calculada "Realpolitik", na qual o bem da comunidade era posto acima do interesse individual dos escravos que buscavam refúgio nas aldeias.
A heterogeneidade étnica presente nos quase cem anos de história dos Palmares (que para muitos analistas não passava de um Estado concebido e administrado pelas leis dos bantos) demonstra também a existência de uma visão política comum capaz de incluir ameríndios, europeus renegados ou mestiços que aceitavam as premissas políticas, ideológicas e sociais da república, e que por alguma razão buscavam defender os fugitivos contra seus inimigos.
O fato de Palmares ser uma comunidade de escravos fugitivos em cujo território viviam também indivíduos livres e não-africanos possui grande importância histórica e ideológica; a heterogeneidade é o fator que transforma a história da república numa idéia atemporal, em inspiração potencialmente transformadora para os atuais movimentos de protesto social.
A reapropriação da história do Zumbi dos Palmares foi imprescindível para o movimento afro-brasileiro contemporâneo. Ao deslocar o foco das comemorações nacionais dos negros de 13 de maio para 20 de novembro, os afro-brasileiros adotaram corretamente, em meados dos anos 70, uma data de resistência negra, em oposição à data mais tradicional representativa da manumissão "legal" contida no decreto assinado pela filha de d. Pedro 2º.
A mudança da data comemorativa representou ainda os esforços da população negra em ser sua própria interlocutora, falando em nome de um movimento obrigado a enfrentar não apenas um racismo nacional que se recusa a ver a si mesmo como discriminação, mas também uma sociedade que acusa de racistas os próprios adversários desse preconceito e segregação.
Na tentativa de obter apoio nacional e internacional para seu movimento, os afro-brasileiros inseriram legitimamente a história do Zumbi dos Palmares no contexto mais amplo dos protestos e rebeliões sociais das Américas. A república dos escravos fugitivos foi equiparada tanto a outras revoltas brasileiras, como a de Tiradentes e as rebeliões baianas do século 19, quanto à derrubada do regime colonial francês no Haiti por Toussaint l'Ouverture e às insurreições antiescravistas de Denmark Vesey e Nat Turner nos EUA.
Além disso, foram traçados paralelos entre as lutas dos negros no Brasil e os esforços anticolonialistas de países subjugados por Portugal. Contatos pessoais entre ativistas sociais afro-brasileiros e antigos líderes anticolonialistas de Cabo Verde, Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe representaram também uma importante aliança com os movimentos internacionais de protesto social.
O relacionamento algo problemático entre afro-americanos e afro-brasileiros deve-se muitas vezes à ignorância e à falta de tato dos norte-americanos em relação aos marcos da história dos negros no Brasil: o desconhecimento é impressionante e estende-se desde os Palmares de Zumbi até as revoltas baianas do século passado, desde a liderança antiescravista de André Rebouças e José do Patrocínio até a criação do movimento Frente Negra, desde o teatro experimental negro de Abdias do Nascimento até a realização das "Semanas Zumbi" na Universidade Federal Fluminense e no Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes, desde o movimento Afoxé em Salvador até a fundação do Movimento Negro Unificado em São Paulo.
Se os movimentos socioculturais negros no Rio e a escolha do 20 de novembro como a data da consciência nacional afro-brasileira são fatos desconhecidos ou pouco discutidos no Brasil, nos Estados Unidos eles permanecem lamentavelmente imersos na mais profunda ignorância. Na relação dinâmica entre afro-brasileiros e afro-americanos, por outro lado, é importante que a imagem racial norte-americana seja constantemente renovada, a fim de evitar os usuais estereótipos forjados nas décadas de 50 e 60.
O atual dilema racial nos Estados Unidos, veiculado internacionalmente pela mídia, pode ser caracterizado tanto pela violência e preconceito raciais da polícia no julgamento de Rodney King e O.J. Simpson quanto pelas imagens dos guetos urbanos assolados pela pobreza, drogas, Aids e alcoolismo, onde vive uma geração perdida rotulada de subclasse. Tais imagens são tão violentas quanto conclusivas e constituem o substrato da profunda crise institucional que resultou na Marcha de Washington.
Justapostas a essas imagens, no entanto, está o fato de que a classe média dos afro-americanos efetivamente existe e tem acesso às grandes universidades. Isso é resultado, em parte, das leis sobre a "ação afirmativa" (contestadas com veemência pelos neoconservadores), que reservam às minorias e às mulheres um determinado número de vagas acadêmicas para corrigir as injustiças do passado, responsáveis aliás pelo baixo contingente desses grupos em profissões liberais e em cargos de importância no governo americano.
Ao mesmo tempo, como consequência dessas medidas para abrandar a disparidade racial, cresceu o número de médicos, advogados, policiais e políticos afro-americanos. Hoje, a nomeação de embaixadores, generais ou reitores negros é um fato comum e perfeitamente aceito na vida do país. O número de negros pertencentes à chamada "classe média baixa" cresceu na mesma proporção que os jovens da "minoria perdida" -os negros e os hispânicos.
Como resultado desses movimentos paralelos, os EUA testemunham hoje o rápido crescimento de um sistema de classes consciente e desvinculado dos grupos étnicos. Patologias geralmente associadas às minorias raciais -tais como mães solteiras e dependência da ajuda estatal- são cada vez mais frequentes entre os brancos. Aos poucos, os integrantes negros da classe média perdem todo contato com as minorias das classes baixas, sobretudo quando são vítimas da violência intra-racial.
A constatação da importância das classes sociais -popularmente negada no folclore político norte-americano- foi estendida com relutância às populações minoritárias do país. Agora passou a ser notícia de jornal quando um universitário de certa minoria é preso por engano, confundido com algum criminoso procurado, ou é visto a pé num bairro em que tradicionalmente não residem membros da minoria.
Recentemente, um conhecido executivo negro de Nova York -cujo pai é fundador e diretor de uma revista sobre empreendimentos negros- foi preso no trem que o conduzia ao trabalho. O trem acabara de chegar de Westchester, um subúrbio rico e afluente onde moram vários executivos. Ao ser informado que seu aspecto físico batia com a descrição do suspeito, um negro alto e corpulento, o executivo fez notar a ausência de toda semelhança entre ele e o pretenso criminoso. Depois de devidamente revistado, o executivo foi libertado, com um simples pedido de desculpa dos policiais. Indignado e com respaldo na mídia, ele foi a público e ameaçou processar judicialmente a companhia ferroviária por tentativa de difamação.
As reações ao incidente foram particularmente curiosas: a comunidade afro-americana considerou o caso mais um exemplo do descontrole policial ao lidar com minorias. Vários comentaristas brancos e profissionais da mídia declararam peremptoriamente seu apoio a uma polícia atenta, empenhada em prender os malfeitores, e o fato de a vítima ser um integrante da minoria (que por acaso pertencia à classe média e tinha livre acesso à imprensa) era sem dúvida algo lamentável, mas cujas motivações certamente não eram raciais.
A classe tornou-se um fator decisivo no incidente. Não fosse pelo prestígio de sua família e por sua própria posição social, a prisão do executivo não passaria de um procedimento de rotina e jamais seria noticiada pela mídia nem acabaria nos tribunais de Justiça.
Como interpretar esse incidente à luz dos inúmeros casos em que jovens hispânicos e afro-americanos são presos irregularmente pela força policial? Estatísticas recentes indicam que um a cada três jovens negros tem passagem pela polícia. Boa parte está presa, aguarda julgamento na prisão ou cumpre livramento condicional. Para o segmento da população composto por tal minoria, a crise é devastadora.
Nos últimos 20 anos, a melhoria das condições de vida dos demais membros da sociedade teve poucos reflexos nesse grupo. De fato, essa é uma das razões da profunda alienação tão comum aos jovens dessa minoria.
O colapso da unidade familiar, a ausência do respaldo financeiro do pai, a presença nefasta do tráfico ilegal de drogas, a consciência do estado crítico da comunidade negra -tudo isso serviu como estopim para a marcha de Washington, cujos manifestantes pertencem a uma espécie que, como se diz, está à beira da extinção: o homem afro-americano.
O interesse dos organizadores da marcha em obter o reconhecimento internacional e o convite feito diretamente a grupos latino-americanos para participarem do protesto dos negros representa a contínua internacionalização do protesto social dentro das Américas. Do mesmo modo, as várias palestras e os simpósios sobre Zumbi e a contribuição dos negros para a história brasileira realizados em 1981 e 1982 no Rio, São Paulo, Belo Horizonte, São Luís e Brasília também buscaram apoio internacional e contaram com a participação de professores e ativistas sociais estrangeiros.
A partir de meados da década de 70, os contatos entre o movimento afro-brasileiro e os membros da comunidade internacional aumentaram consideravelmente. Especialistas em assuntos raciais começaram a chegar ao Brasil; aos poucos, afro-brasileiros versados na questão racial foram convidados para importantes conferências nos EUA, no Caribe e na África, a fim de divulgarem suas novas pesquisas sobre os negros brasileiros e sua posição na sociedade.
A internacionalização de temas afro-brasileiros, o crescente interesse de universidades norte-americanas em oferecer cursos sobre as relações raciais na América Latina e na África e o atrativo cultural representado pelo candomblé, umbanda, capoeira, samba de roda e outros tipos de música popular brasileira ajudaram a despertar a curiosidade pelos problemas do negro no Brasil; além disso, contribuíram para a aliança de seus representantes com os demais movimentos da Diáspora Africana.
Quando personalidades brasileiras como Benedita da Silva, Gilberto Gil ou Abdias do Nascimento são convidados para palestras acadêmicas, conferências ou eventos culturais, o movimento negro do Brasil ganha simultaneamente maior prestígio, maior compreensão e possíveis adeptos em todo o mundo. Tais alianças internacionais podem ser vistas como uma confirmação da legitimidade do movimento afro-brasileiro, designando-lhe um papel necessário dentro de um contexto social, geográfico e ideológico mais amplo.
Os vínculos internacionais entre afro-brasileiros e demais líderes dos movimentos sociais da Diáspora Africana (sob a forma de contatos entre organizações não-governamentais do hemisfério norte com o hemisfério sul) são beneficiados pela nova tecnologia, pela ciência cibernética e pelas informações e dados bibliográficos computadorizados sobre temas africanos e latino-americanos.
O acesso a informações e à comunicação direta com pesquisadores dá novo alento aos estudos e mantém atualizados os ativistas sociais tanto do Norte quanto do Sul. As estratégias de mudança social e a resolução de diferentes problemas sociais transformam-se assim em propriedade comum.
É importante que as soluções "do Sul" sejam comunicadas e amplamente difundidas no "Norte", a fim de evitar um simples fluxo contínuo de informações. É importante que as experiências de sucesso no Sul sirvam de apoio aos programas sociais do Norte. Essa necessidade de ampla divulgação é essencial para estabelecer e consolidar a cooperação entre os dois hemisférios.
A ressonância de Zumbi nos movimentos sociais estrangeiros e afro-brasileiros sublinham a importância dos Palmares para a história dos descendentes africanos e para todos aqueles que acreditam na verdadeira justiça e participação populares. A eterna mensagem dos Palmares não é uma mensagem de exclusividade étnica, mas de inclusão social ligada aos conceitos de participação democrática e ideais compartilhados.
Se Zumbi ainda vive, ele será encontrado em nossa dedicação à justiça e igualdade sociais e na erradicação de qualquer discriminação ou preconceito racial. Se Zumbi ainda vive na Baixada Fluminense, em Salvador ou em Los Angeles é para nos lembrar das promessas de uma sociedade verdadeiramente justa e democrática como nosso ideal de nação. Esse é o autêntico significado de Zumbi. Honraremos sua memória e a memória dos Palmares se nos dedicarmos a alcançar tal objetivo.

Tradução de JOSÉ MARCOS COELHO

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