São Paulo, domingo, 26 de novembro de 1995
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Guilherme, o silencioso

Marilene Felinto

MARILENE FELINTO
GUILHERME, O SILENCIOSO

Peguei o apelido emprestado do príncipe holandês Guilherme I (também chamado "o taciturno"), que viveu no século 16. O Guilherme de hoje é quase trinta anos mais velho do que eu, único homem que já me fez sentir vergonha de escrever -quer porque o texto dele é das poucas coisas que admiro (entre os vivos), quer porque não consigo refutar seus argumentos, sempre melhores do que os meus.
Único homem talvez que já me fez sentir ligeira vergonha de ser mulher -houve outros, como o cabo Rusty, o garoto-soldado da série de televisão "Rin-Tin-Tin", dos anos 60; Will Robinson, o menino-astronauta da série "Perdidos no Espaço", e John Boy Walton, jovem escritor da também série de TV "Os Waltons", dos anos 70. Só me restava (por não poder ser eles) me apaixonar perdidamente por todos.
A diferença é que Guilherme existe, não me apaixonei por ele -mas vejo que foi atraente quando jovem-, lê jornais e livros, e guarda ainda uma flama de revolta adolescente, apesar do indisfarçável ceticismo. Faço de conta que ignoro o tom professoral de seu discurso.
Aprendi desde cedo a me defender de professores -aceitava respeitosa o que tinham para me ensinar, mas compreendendo que eles não sabiam nada além daquilo e, portanto, nada além do que eu própria não sabia e procurava descobrir. Professores sempre me entristeceram.
Mas o tom professoral de Guilherme se dissolve, misturado ao de sua indignação: diz que estou errada, que estamos errados, que há um erro proposital na maneira de considerar a história do mundo. Vincula o mito à humanidade ingênua.
Está farto das "mitologias ocidentais", dos Shakespeares, dos Cervantes -instrumentos de dominação da cultura branca ocidental. Por que elegeram Shakespeare o melhor? Em nome de quê? Que importância tem Shakespeare para culturas não ocidentais? Nenhuma. Nem deve ter.
Guilherme é branco mas é pró negros, índios, árabes. Por acaso eu tinha aprendido na escola que a civilização egípcia era negra? Os livros de história sequer mencionavam isso. Abafavam. O Ocidente branco não podia divulgar a genialidade da civilização egípcia como produto da raça negra. Escondiam, tampavam o fato.
Em seu exercício de cosmovisão, Guilherme comentou que a história se repetia. A imprensa tinha abafado a importância da recente marcha de negros americanos em Washington, que levou às ruas um milhão de negros liderados pelo muçulmano Louis Farrahkan. Devia ter sido capa de todos os jornais, o fato do ano.
Que eu observasse direito a arenga entre a Igreja Universal do Reino de Deus e a rede Globo. Que, igreja por igreja, ele queria que tanto católicos quanto protestantes "se fo...." Que o Vaticano, na Itália, também cobra ingressos dos fiéis que queiram apreciar o ouro de suas riquezas.
Que eu ponderasse: a Globo nunca se viu tão ameaçada quanto pela igreja desse bispo Edir Macedo. A Globo não é menos culpada, pela exploração da fé das massas, do que a Igreja Universal. Se Roberto Marinho podia ter um canal de TV, que Edir Macedo também tivesse.
Mas Guilherme se esconde. Fala na privacidade de uma sala. Quem sai para o mundo sou eu, carregando o fardo da minha juventude, expondo meus atos falhos, obrigada a acreditar em tudo que digo.

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