São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 1995
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"O Passageiro" capta a vertigem da vida

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem ama o cinema e a vida não sai ileso de "O Passageiro - Profissão: Repórter", de Michelangelo Antonioni, um dos filmes da videoteca ideal do diretor Walter Salles.
Os problemas da identidade e do destino individual sempre foram o substrato do cinema de Antonioni, mas em "O Passageiro", de 1975, eles se tornam o próprio "assunto" do filme, fundo e figura se entrelaçam de modo tão completo e orgânico como poucas vezes se viu no cinema.
A história diz respeito a um repórter de televisão, David Locke (Jack Nicholson), que resolve assumir a identidade de um desconhecido, morto no mesmo hotel em que ele está hospedado, no interior da África.
A semelhança física com o morto e a precariedade das instituições africanas facilitam a operação, que dará a Locke a sensação de estar livre, solto no mundo.
Claro que se trata de uma ilusão. A nova identidade é, tanto quanto a outra, uma prisão, só que mais perigosa e desconhecida.
Curiosamente, é talvez o filme do cineasta com enredo mais repleto de acontecimentos espetaculares: golpe militar na África, fuzilamento de rebeldes, assassinato político, tráfico de armas. Tudo isso, entretanto, ocorre como que nas bordas do quadro, fora do foco do cineasta.
O que importa a Antonioni é captar o salto de seu personagem no vazio. É a própria câmera, liberta da lógica narrativa convencional, que voa em liberdade.
Na cena mais célebre do filme, a câmera abandona o protagonista, deitado na cama de um hotelzinho da Andaluzia, percorre o quarto e sai pela janela, passando entre as grades graças a um engenhoso truque mecânico (a própria grade se dobrava para fora do campo de visão da lente, permitindo a passagem do equipamento), dá a volta na deserta "plaza" em frente e volta a focalizar o quarto, desta vez de fora para dentro.
Nos seis ou sete minutos que dura esse plano intensíssimo e silencioso, tudo acontece fora de campo, "às nossas costas", por assim dizer.
Um movimento tão audacioso e surpreendente como esse já suscitou todo tipo de interpretação, até "espírita" -seria a alma do personagem que deixa seu corpo e, já desencarnada, o vê sem vida.
Pouco importam as interpretações. São minutos de uma poesia que nem a literatura, nem a música e nem a pintura podem reproduzir. Ao fazer aquilo que normalmente não se faz no cinema (filmagem em tempo real, elisão do acontecimento dramático central, ausência de diálogo e de música), Antonioni faz cinema puro.
Mas não se trata de um mero exercício de estilo ou exibição de virtuosismo. É um filme de uma poesia ao mesmo tempo maravilhosa e terrível.
Sozinho, flutuando (literalmente, num teleférico) sobre uma labiríntica Barcelona, ou ao lado de outra presença flutuante, uma francesinha que vive com a cabeça nos livros e nas nuvens (Maria Schneider), Locke é a própria encarnação da fugacidade da vida.
Para quem está por aqui de passagem, como ele -e como todos nós, só que não percebemos-, o mundo é uma vertigem.

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