São Paulo, quinta-feira, 30 de novembro de 1995
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Uma relação simbiótica

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"A gente nunca sabe se a diretoria do Banco Central (BC) está defendendo a estabilidade do sistema financeiro ou seus empregos de amanhã!" -foi a exclamação do senador Esperidião Amin a propósito de medidas adotadas pelo governo em favor dos bancos nos últimos meses.
Em tese, as explicações governamentais têm a sua validade. Uma das funções primordiais de todo banco central moderno é zelar pela segurança do sistema financeiro. Como se sabe, essa tradição se consolidou com o trauma da Grande Depressão dos anos 30, que foi magnificada por uma onda de colapsos bancários.
O problema é que nada de fundamental foi feito para reforçar a posição institucional do BC do Brasil, que continua excessivamente exposto a interesses financeiros privados e pressões políticas espúrias.
Vejam as dificuldades que podem surgir. Não há meios de submeter inteiramente a atuação do BC como emprestador de última instância e supervisor do sistema financeiro a regras predeterminadas e parâmetros fixos. Muitas vezes, a atuação e as intervenções do BC têm que se desenvolver de forma discricionária, conforme as circunstâncias de cada momento.
Daí surge uma zona cinzenta na qual o BC, a pretexto de defender o interesse público, pode acabar favorecendo interesses particulares. Esse risco é tanto maior quanto maior for o seu grau de simbiose com interesses financeiros privados.
Não me ocorre colocar em dúvida a honorabilidade pessoal da atual diretoria do BC. A questão é outra: o BC brasileiro, pela sua posição institucional e pelos seus antecedentes não muito exemplares de envolvimento com interesses financeiros privados e de subordinação a motivações políticas circunstanciais, não desperta confiança no exercício das suas funções básicas, especialmente a de guardião da estabilidade do sistema financeiro. Nessas condições, as suas intervenções são sempre objeto de suspeitas.
Quantos de seus ex-diretores não foram parar no sistema financeiro, nacional ou internacional, logo após deixar o cargo? Um levantamento dos últimos 15 ou 20 anos revelará que essa foi a trajetória de grande parte, senão da maior parte, do primeiro escalão do BC.
O conflito de interesses é evidente. A passagem pelo BC tornou-se, muitas vezes, uma espécie de trampolim ou estágio probatório para uma carreira no sistema financeiro.
Recentemente, esteve no Brasil Otmar Issing, um dos membros do conselho do Bundesbank, o banco central da Alemanha, muito citado aqui no Brasil como modelo de independência em relação ao governo. Menos comentado é o fato de que os diretores do banco alemão têm que obedecer a uma quarentena de três anos após o exercício do cargo.
Respondendo a indagações da imprensa brasileira, Issing esclareceu que "é inimaginável que alguém possa ir para um banco privado um dia depois de sair do Bundesbank. Quem trabalha em um banco central tem muita informação privilegiada e poderia ganhar muito dinheiro. Pode-se trabalhar em qualquer lugar, exceto em um banco privado.
É possível pedir ao conselho do Bundesbank uma abreviação da quarentena. Mas ninguém faz um pedido desse tipo pouco tempo depois de deixar o cargo. "O poder das informações adquiridas só diminui com o tempo, em dois a três anos", explicou Issing.
Regras como essa fazem falta no Brasil. Na época da Constituinte, havia um setor da esquerda do PMDB que queria estatizar o sistema financeiro. O saudoso Severo Gomes rebateu: "Olha, eu me daria por satisfeito se conseguíssemos estatizar o Banco Central!"
Esse tipo de preocupação acabou por se refletir na Constituição de 1988, que, no artigo 192, inciso 5º, estabelece que a lei complementar do sistema financeiro deve dispor sobre "os requisitos para a designação de membros da diretoria do Banco Central e demais instituições financeiras, bem como como seus impedimentos após o exercício do cargo".
Estamos esperando essa lei até hoje.
Não é por acaso que esse tipo de modernização é tão difícil entre nós. O sistema financeiro não tem grandes motivos para mudar a sua relação algo promíscua com o BC.
Além do mais, a indiferenciação entre público e privado parece ser um traço estrutural da sociedade brasileira. Sérgio Buarque de Holanda observou que no Brasil, desde tempos remotos, os detentores das posições públicas sempre revelaram uma certa dificuldade de compreender a distinção fundamental entre os domínios público e privado.
"Só excepcionalmente", escreveu, "tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal."

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