São Paulo, sexta-feira, 1 de dezembro de 1995
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Procura-se o barão de Mauá

ABRAM SZAJMAN

Só os profetas enxergam o óbvio, dizia Nelson Rodrigues. Entre nós estão faltando profetas, menos para enxergar o óbvio -a realidade-, mas sobretudo para transformá-la, com atos concretos e não com palavras.
A realidade é que o Brasil conviveu muito tempo com a inflação. Ao contrário de buscar curas efetivas para essa doença econômica, nosso corpo econômico e social acostumou-se a dopar-se com a morfina da correção monetária e das aplicações de curtíssimo prazo, que colocaram o mercado financeiro à frente da produção e não em seu apoio, como ocorre na maioria dos países desenvolvidos.
Como a inflação pagava tudo, até os erros de gestão, já que tudo era repassado para os preços, a principal consequência dessa longa letargia foi a perda de produtividade das empresas.
À exceção dos assalariados de baixa renda, tínhamos um país inteiro pendurado na frente da TV para aplaudir quando o apresentador anunciava os rendimentos da poupança naquele mês.
Hoje, quando tudo isso acabou e o mercado começa a fazer fisioterapia para rearticular os membros e recuperar sua capacidade de movimentos, muitas pessoas ficam perplexas com as dores que estão sentindo, pois a transição implica sacrifícios: empresas sucumbem, pessoas perdem seus empregos, setores definham.
Isso está ocorrendo porque o país precisa de algo mais do que preços temporariamente estáveis, único resultado palpável do Plano Real até agora: a economia jovem, dinâmica e potencialmente expansionista do Brasil requer uma radical mudança, que também é cultural, de sua estrutura produtiva.
Como o Brasil é um país peculiar, dificilmente comparável a qualquer outro, para compreensão do presente e delineamento do futuro podemos apenas recorrer ao passado, comparando o Brasil de hoje com o do século 19, quando surgiu como nação independente.
Quando, em 1850, o fim do tráfico de escravos sinalizava também o fim, mais cedo ou mais tarde, do próprio trabalho escravo, o pânico tomou conta de muita gente. O capital se concentrava na mão dos traficantes de escravos, que também controlavam parte considerável do comércio externo de um país que exportava café e importava praticamente tudo o mais que consumia.
Como o retorno dos investimentos na lavoura cafeeira era de longo prazo, os fazendeiros tomavam dinheiro emprestado dos traficantes para capital de giro, a juros elevadíssimos, e apesar disso tinham lucros também elevados. Os escravos negros de ontem, assim como os assalariados de baixa renda de hoje, sustentavam o parasitismo da corte (leia-se governo, hoje) e dos agiotas.
Foi nessa conjuntura que surgiu um homem chamado Irineu Evangelista de Souza, barão e visconde de Mauá, cuja saga está brilhantemente descrita no best seller de Jorge Caldeira, "Mauá, Empresário do Império".
Inicialmente comerciante, Mauá criou um banco, para financiar a produção a juros baixos: a diferença entre as taxas de captação e de empréstimo era de apenas 2% ao ano! Investindo ele próprio na indústria, construiu estradas de ferro, companhias de navegação, uma fundição e estaleiro naval para a construção de seus próprios navios e empresas de serviço público, como a que iluminou com lampiões de gás a cidade do Rio.
Em outras palavras, Mauá não se lamentou com o final de um tempo. Não ladrou vendo a caravana passar, mas entrou nela, lançando as bases de uma economia que apresentou os mais elevados índices de crescimento até poucas décadas atrás. Ao criar seu próprio império de 17 empresas em seis países, Mauá já trabalhava com conceitos que ainda hoje muitos empresários não conseguem assimilar: globalização, tecnologia de ponta, multilateralismo.
Com sua ousadia e pioneirismo, Mauá desvinculou-se da lógica da sociedade escravista, deixando-nos esta lição: pessoas, empresas, setores e países são mais ou menos ágeis, ou simplesmente lentos.
Os que são lentos ou se acomodaram nessa postura correm o risco de ficar pelo caminho. Mas se, ao contrário, conseguirmos agilidade, inovação e eficiência, estaremos resgatando o sonho de Irineu Evangelista de Souza, do menino órfão de pai, que atendia no balcão e dormia no armazém, mas que mostrou ao mundo do que os brasileiros são capazes quando acordam de seu berço esplêndido.

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