São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O imaginário medieval

FRANCO CARDINI

A Eva Barbada - Ensaios de Mitologia Medieval
Hilário Franco Junior Edusp, 256 págs.
R$ 29,50

Ao que parece -ao menos olhando os afrescos da igreja de Saint-Savin, no Poitou, na França central, um dos mais importantes testemunhos da pintura românica-, Eva tinha uma longa barba: ou alguém acreditou que podia assim figurá-la, a não ser que se trate (como às vezes se pensou) da hesitação de um pintor que acabou por conferir traços masculinos a uma imagem originalmente feminina, ou então de um equívoco interpretativo.
A idade românica (século 11 e primeira metade do 12) foi um tempo no qual, no Ocidente, ainda não se gostava de usar barba: apenas penitentes e peregrinos o faziam, enquanto a barba era habitual entre os gregos (muito malvistos) e os sarracenos (detestados), para não falar dos judeus. Ainda hoje, no plano etimológico, discute-se entre os estudiosos da evolução histórica das línguas neolatinas, sobre as relações entre a palavra "barba" e o conceito de "barbárie".
Continua aberta a questão relativa ao momento no qual a iconografia ocidental aceitou a imagem de Cristo provido de barba -depois destinada a tornar-se indiscutida-, substituindo aquela do jovem vestido "à romana" e triunfalmente imberbe. Ainda em meados do século 12, o imperador Frederico 1º suscitava gritaria com sua barba cor de ferrugem, que ele deixara crescer provavelmente durante a segunda cruzada (e os italianos o chamaram por isso Barba Ruiva). Não faltaram, igualmente, nas primeiras décadas do século 13, artistas que pintaram Francisco de Assis com barba.
O problema da introdução da barba no Ocidente europeu é por si só muito interessante, fazendo parte de um rol de questões aparentemente pouco relevantes, mas de valor substancial, percebido apenas pelos que conhecem história seriamente. Quem, contudo, tiver maior familiaridade com o longo período que se convencionou chamar de Idade Média, perceberá que, no caso da Eva barbada de Saint-Savin, é preciso ir além. Porque, além da moda e do costume, está o folclore; e, além do folclore, existe a vasta e ainda pouco explorada "floresta de símbolos", na qual mitos e tradições se entrelaçam.
A Idade Média conheceu e venerou santas "barbadas", mas também imagens de Cristo dotado de alguns atributos femininos. Foi com tradições análogas a esta que um grande historiador das religiões, Mircea Eliade, exemplificou a permanência de um símbolo arquetípico que atravessa tanto a cultura grega quanto a hebraica, permanecendo por isso presente em parte da literatura bíblica apócrifa: o símbolo do hermafrodito, entendido não como "monstrum", brincadeira curiosa ou atroz da natureza, mas como ser originariamente perfeito, dotado de duplas características sexuais, o que a decadência posterior da espécie humana separou em dois sexos, fazendo assim com que se perdesse a primitiva completude total do ser.
À imagem da Eva barbada é dedicado um dos ensaios centrais do livro "A Eva Barbada", de Hilário Franco Junior, que traz o subtítulo "Ensaios de Mitologia Medieval". O conceito de "mitologia medieval" parecerá talvez estranho; no entanto, a idéia de um sistema de imagens e de narrativas firmado no decurso da Idade Média "cristã" (que permanecia, não obstante, nessa condição), e passível de estudo enquanto sistema mítico, foi proposto neste último quartel de século por um grupo de medievalistas, franceses sobretudo, ligados à "Nouvelle Histoire" e aos ensinamentos de Jacques Le Goff.
Insistindo sobre os vínculos entre Fantástico e Imaginário, Le Goff e sua escola -no interior da qual se deve atribuir um papel especial a Jean-Claude Schmitt, autor do "Prefácio" do livro de Hilário Franco Junior- elaboraram um método original de abordagem da "longa Idade Média", estudando-a com instrumentos não apenas da história e da filologia, mas também da antropologia cultural. Neste sentido, a "Nouvelle Histoire" continuou o caminho da Escola dos Annales, nascida na França dos anos 30 e na qual se inspiraram, de formas diversas, estudiosos como Claude Lévi-Strauss e Georges Dumézil. O Andrógino Primordial, evocado na imagem da Eva barbada de Saint-Savin, remete a uma perfeição perdida, a um mito paradisíaco que Hilário Franco Junior já havia estudado num livro recente e bem concebido, "As Utopias Medievais" (1992).
Agora, nos ensaios reunidos em "A Eva Barbada", o discurso do livro de 1992 está coerentemente aprofundado e enriquecido de aspectos que sublinham como, no pensamento do autor, a história é o ponto central para o qual convergem as ciências sociais e as ciências humanas. Seguindo e desenvolvendo não apenas o ensinamento de Le Goff, mas também as sugestões de Gurevich e as indicações de Eliade e de Durand, ele traça um rigoroso e corajoso retrato da cultura cristã medieval como lugar no qual imagens e narrativas de diferentes origens (bíblica e evangélica certamente, mas também helênica, céltica, germânica, hebraica) se entrelaçam e acabam por se harmonizar de modo original e coerente. Se alguns dos ensaios que compõem este livro testemunham a coerente atividade de pesquisa desenvolvida pelo autor no último decênio, outros, inéditos, testemunham a continuidade de seus interesses.
É o caso daquele, fundamental, sobre as relações entre cristianismo e mitologia; daquele sobre o império de Preste João -forma original por meio da qual, entre os séculos 12 e 13, a cultura européia entrou em contato com a Ásia Central e com o Extremo Oriente; daquele sobre a passagem do herói pagão ao herói cristão tal como o viu a épica dos séculos 10-12; daquele sobre arte e mito no "Caminho de Santiago". Na prática, os ensaios deste volume formam um livro não apenas coerente, mas, sob muitos aspectos, inédito: bem diferente das coletâneas de ensaios que caracterizam parte da produção de estudiosos chegados, como Hilário Franco Junior, à maturidade científica e que passam, então, a revelar certa dificuldade em prosseguir os estudos e aprofundar os temas escolhidos.
Duas qualidades fundamentais fazem deste um livro muito importante. Primeira: a coerência metodológica, que permite confrontar a dimensão mítica com outras dimensões (história, sociedade, oralidade, literatura, folclore, iconologia, escatologia), submetendo os resultados da pesquisa a uma série de verificações entrecruzadas. Segunda: o caráter interdisciplinar, frequentemente considerado fundamental pelos estudiosos mas raramente concretizado, pois são poucos os pesquisadores em condição de utilizar conhecimentos científicos (e linguísticos) tão amplos e caracterizados por uma liberdade tão corajosa em relação a esquemas ideológicos e a fórmulas interpretativas.
É isso, acima de tudo, que me parece apreciável no trabalho de Hilário Franco Junior. A atenção e humildade com que demonstra conhecer e saber utilizar os mais atualizados e recentes resultados da reflexão medievalista de um e de outro lado do Atlântico, mas ao mesmo tempo o sereno senso de responsabilidade com que elabora suas temáticas e apresenta seus resultados, acolhendo ora as solicitações da dumeziliana "ciência da mitologia", ora das reflexões sobre as elites realizadas por Max Weber, ora da pesquisa de Gilbert Durand sobre a estrutura antropológica do imaginário, ora da historiografia socioestrutural ligada a Karl Marx, porém liberada do peso ideologizante que torna tal tradição difícil de ser usada livremente.
Este modo de pensar, ágil e sem preconceitos, caracteriza a atividade de estudioso de Hilário Franco Junior e o aproxima da melhor parte da jovem historiografia européia, da qual -como europeu- considero-o parte integrante. Na Europa, a língua portuguesa e a produção brasileira são, por enquanto, menos conhecidas do que deveriam ser. Desejo portanto ver este livro traduzido, o mais rapidamente possível, não apenas em francês e em inglês, mas também em italiano.

FRANCO CARDINI é professor da Universidade de Florença, autor, entre outros, de "Magia, Stregoneria, Superstizioni nell'Occidente Medievale" (1979), "I Giorni del Sacro" (1983) e "Francesco d'Assisi" (1989).

Tradução de LAURA DE MELLO E SOUZA

Texto Anterior: Conversa vai, conversa vem
Próximo Texto: A aventura do ser moderno
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.