São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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Triste Bahia

CARLOS GUILHERME MOTA

Avant-Garde na Bahia
Antonio Risério Instituto Lina Bo e e P. M. Bardi, 259 págs. R$ 32,00

Observando a regressão por que passa a cultura no Brasil, a indagação de Gregório de Matos do século 19 -"que me quer o Brasil que me persegue?"- adquire atualidade. Como o último livro de Antonio Risério.
O estudo-depoimento do sociólogo baiano "Avant-Garde na Bahia" oferece material novo para reflexões sobre os ínvios caminhos da produção cultural no Brasil nos últimos 40 anos. Tanto pelos problemas que levanta como pela linguagem -uma espantosa e simpática oralidade- e pela história que faz, Risério obriga-nos a uma reavaliação do que tem sido o que denomina "a nova cultura brasileira". Já era tempo de narrar essa história, na ótica de uma nova geração: "A Bahia não apenas quis ser um centro cultural forte e inovador naquela época. Ela foi". De fato, a historiografia da cultura não registra, ou registra mal, aquela efervescência decisiva do fim dos anos 50 e início dos 60, enquanto a Bahia continuava "exportando Jorge Amado, cuja performance vinha de antes".
No livro ressurge a preocupação com o tema da cultura brasileira, tanto no prefácio de Caetano Veloso, como na nota prévia de Marcelo Ferraz. E com o tal "conjunto brasileiro de cultura" que persegue o autor. Lendo-os, em tempo de globalização, fica-se a perguntar qual a razão desse retorno à velha "Cultura Brasileira", (pre)ocupação mais soteropolitana que paulista. Fica a impressão inicial -ilusória- que existe efetivamente uma cultura brasileira...
Mas o livro não confirma a impressão primeira. Revela, antes, a necessidade de estudos sobre a complexidade das variadíssimas galáxias com suas produções culturais específicas, que gravitaram por este território imenso, naquele momento particularmente rico de nossas histórias plurais. Galáxias culturais que Risério não desconhece, mas também não cita, embora sempre cite muito. Fica na sua, em que surgiram iniciativas e rupturas tão profundas quanto a polarizada pelo médico-reitor Edgard Santos na Universidade Federal da Bahia na virada dos anos 50. Uma abertura de foco e notaria que, em São Paulo, Bastide (que encaminhou Verger a Salvador) e Florestan, mais equipe, abriam novas sendas no estudo das mudanças histórico-sociais, ocupados com a implantação de um padrão de rigor e senso de problemas nas ciências sociais no Brasil, o que de certo modo também ocorria na filosofia, nas ciências e na literatura (sobretudo na crítica e na história). Visões radicais, que não podiam fazer escola, despontavam no cenário descombinado e desigual do país: de Jomard Muniz de Brito em Recife com seus nordestinados ao escritor Raymundo Faoro, autor de "Os Donos do Poder", em Porto Alegre, a nova crítica ganhava fôlego. Entre uma vaga e outra, surgiu esta bomba sulina com o "placet" de Erico Verissimo. Que dizia? Constatava que, dada a persistência do patronato político ao longo de cinco séculos, jamais emergiu nesta história uma genuína cultura brasileira... O ano era 1958.
"Avant-Garde na Bahia" desvenda a galáxia específica com foco em Salvador e faz história. Explica como, por que e quem organizou a produção dessa época numa Capitania marcada -antes e depois- por uma estranha complacência para com o poder, o coronelismo, a tocaia cultural grande ou pequena.
Numa "composição que atende mais ao sentido do que ao rigor da forma", na bela expressão do maestro H. J. Koellreuter, Risério desenha o contorno daquele renascimento cultural na Bahia que permitiu o surgimento do Cinema Novo, da Tropicália, de uma nova concepção de teatro, de música, de dança, de arquitetura, de estudos transculturais. Por quê, em determinada época em que o país procurava sair da doce consciência de atraso, foram chamados a Salvador criadores culturais inquietos e críticos como Lina Bardi para dirigir o Museu de Arte Moderna, o notável compositor Koellreuter para os Seminários Livres de Música, o visionário Agostinho da Silva para um Centro de Estudos Afro-Orientais, com Eros Martim pondo Brecht em movimento, Smetak fazendo suas experiências musicais, o fotoetnógrafo Pierre Verger se transformando em Fatumbi Verger? Note-se: nesse ambiente já atuavam os jovens Carlos Nelson Coutinho, Glauber, Vivaldo da Costa Lima, Luiz Carlos Maciel e, diversamente do que se passava na USP, surgia uma brilhante geração de médicos-psicanalistas com leitura renovada da "cultura".
A força do livro de Risério está no desvendamento das relações entre a produção concreta, a criação, a crítica e as instituições que abrigaram durante curto porém extremamente fecundo período aqueles produtores de vanguarda. E aqui sobreleva a figura desse homem com senso de instituição, o reitor Edgard Santos. O estudo de sua formação, sua contraposição à retórica vazia, o apoio à atuação de figuras como Lina Bardi (atuando, escreve Risério, "num campo artístico-intelectual defasado, espiritualmente rastejante"), a capacidade de chamar gente competente e heterodoxa, mas também suas limitações e ambiguidades esclarecem por que a Universidade Federal da Bahia foi naquele período um farol para a nova produção cultural do país. Sua atuação -permito-me o testemunho- alcançava até mesmo estudantes terceiro-mundistas da USP, então muito atuante. A Bahia, cosmopolita, importava talentos, e a universidade fazia ponte com o MAM: no dizer de Glauber, esses eram os "tanques de choque" na guerra de atualização cultural, com sua "pedagogia da inquietude" cultivada por Lina, Koellreuter e o messiânico Agostinho, obcecado com a formação de uma civilização no Atlântico Sul, na linhagem do historiador Jaime Cortesão.
O reitor coordenava o esforço em que se procurava recolocar, via cultura, a Bahia no mapa do Brasil, marginalizada após a Revolução de 30. Mas, como filho de elite, seria Edgard hostilizado pela oposição dos estudantes de esquerda; ao mesmo tempo, expressão que era de uma elite modernizante, pelo velho sistema cultural do senhoriato da província. A descrição do "cerco" reacionário a Lina -estrangeira e mulher- impressiona ao confirmar a violência desse "Brasil profundo", ancestral, mas ilumina ao indicar como a Bahia mudou Lina, como mudou Verger e continua mudando -suas vanguardas, é bom frisar- tanta gente. Risério mostra como a "avant-garde não cruzou incólume as terras baianas. Transfez-se. Pessoal e textualmente. O olhar que contemplava o outro retornou transfigurado para incidir em cheio sobre o mesmo".
Na fase atual de implacável mediocridade que sufoca a universidade e várias de nossas instituições culturais, inclusive o Ministério da Cultura, o livro de Risério torna-se oportuno. Deixemos de lado suas citações exuberantes, o tal neobarroquismo sincrético. O fato é que o autor -que já nos deu livros importantes, como "O Poético e o Político", com Gilberto Gil- permite compreender o sentido de uma ação político-cultural de resultados profundos. Prova que a vanguarda por vezes, não muitas, pode utilizar-se da universidade, de museus, de escolas. Mas que é necessário gente com "virt— e não apenas burocratas do holerite.
Se o paradigma das vanguardas de São Paulo dessa época era a requalificação do trabalho intelectual, a criação do espaço da ciência e da crítica, a atualização do marxismo e dos clássicos, em Salvador, propunha-se uma releitura mais radical das formas estético-intelectuais centradas naquilo que seria "nossa história", o nosso fazer. Eis uma pista para entender-se a radicalidade não só da obra de Caetano, Gil, Glauber, mas a percepção das complexas e diferentes historicidades das formações histórico-culturais do país. Risério nos diz que está na hora de pormos em questão o sistema cultural que está aí montado, um novo bloco no poder tentando combinar um Gramsci amaneirado com Gilberto Freyre. Apuremos os ouvidos e os olhos: passando ao largo do Ministério da Cultura e do Pelourinho global, a nova revolução cultural bate à porta.

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