São Paulo, segunda-feira, 4 de dezembro de 1995
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O amigo do sábio

LYGIA WATANABE

Pois o amor por um menino, "pais", implica desde logo seu bem e sua educação, "paidéia".
O ponto de partida da discussão é: como deve se comportar o jovem Hipótales, de atitudes tímidas e tortuosas, diante de seu amado Lísis, "o mais belo da palestra"? Deixar que este faça todas as suas vontades é coisa que nem sequer os pais, que também o amam, podem permitir. Ora, os pais são os primeiros mestres, que sempre desejam o bem para seus filhos, o mesmo que um amante deve desejar para seu amado. No entanto, eles são "pais", e não propriamente "amigos" (pág. 43). Mas, de fato, quem é o "amigo", o "phílos", propriamente dito? É o amante ou é o amado? É aquele que ama o seu igual, ou aquele que deseja seu oposto (à Empédocles e à Heráclito)? É o que ama o belo ou o útil? É de estranhar, então, que Sócrates se dirija a seus interlocutores, segundo a tradução, como "meus filhos" (pág. 53) para traduzir o vocativo "ho paides", "o' crianças!". Conferindo um tom "paternal" ao relacionamento de Sócrates com os jovens, o tradutor se arrisca a atribuir de novo ao tema central da "philía" o caráter familiar já suplantado pela própria discussão. Essa interpretação esquece, aliás, a boa nota dois da tradução, que nos esclarecia logo de início a compartimentação das faixas etárias em questão no diálogo.
Por detrás da questão "quem é o 'phílos'?", se aquele que ama ou aquele que é amado, se o amante ou o amável, podemos subentender esta outra: entre adolescentes, quem é o mestre? Friedlãnder vê no "Lísis" três estágios da amizade: um "natural", entre os meninos, outro mais "perigoso", entre os jovens, e, finalmente, o amor de Sócrates, exercido como "paidéia" sobre todos os quatro adolescentes.
Ao final da discussão, parece que sabemos apenas aquilo que o amigo não deve ser. Não há soluções. O diálogo pertence à categoria dos diálogos aporéticos, isto é, cuja discussão termina numa aporia, num impasse, em suma, sem que se tenha chegado à definição procurada, no caso, saber o que é um amigo. Os pedagogos, meio bêbados, vêm buscar as crianças para levá-las para casa, interrompendo o desejo de Sócrates de continuar a discutir.
Sempre é bom lembrar que o amigo do sábio é a acepção que o termo filósofo tem no contexto do pensamento pitagórico, e somente se aplica aos que já se encontram em formação cerrada no interior da escola. Para o pitagorismo, filósofo é todo aquele que segue e aspira à sabedoria do mestre Pitágoras. No "Lísis", Platão parece querer sutilmente substituir, na história da filosofia, o grande Pitágoras pela figura de um "novo" mestre. Sofistas, como esse desconhecido Mico do "Lísis", rondam os jovens aristocratas. Mas, quem é o mestre? Felizmente, Sócrates é chamado.
Aliás, é primeiramente Aristóteles quem estuda o pensamento platônico em termos de uma visão nova, própria, que Platão teria tido de seus predecessores, eleatas, heraclitianos e Sócrates. Mas sem jamais retirar o fundador da Academia da sequência lógica e histórica do pitagorismo...

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