São Paulo, terça-feira, 12 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Sivam, soberania e cobiça

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Um dos argumentos mais poderosos utilizados pelos defensores do Sivam é a revelação de que no mês passado foram detectadas 800 "invasões" do espaço aéreo brasileiro na região amazônica; 400 dessas transgressões seriam atribuíveis a aviões de garimpeiros que voam baixo e as outras 400 a aviões maiores voando a alturas mais elevadas. A conclusão a que chegam os sivamistas é de que urge a proteção do espaço aéreo para proteger as riquezas da Amazônia.
Ora, se já somos capazes de detectar tantas incursões e vôos e não fazemos nada, de que adianta detectar um número ainda maior e continuarmos inertes? Se é verdade o que dizem os proponentes do Sivam, então já temos uma capacidade de detecção muito mais ampla do que a de interceptação. O que precisamos não é a ampliação dos meios de informação, mas de instrumentos de ação. Aviões, gasolina, bases aéreas.
Também afirmam os sivamistas que uma região como a do Amazonas precisa de uma proteção ao vôo mais densa.
Se isso fosse verdade, não haveria vôos transoceânicos. É tão seguro voar sobre a Amazônia quanto voar sobre o Atlântico. É verdade que aviões de porte médio não dispõem de instrumental eletrônico como os Boeings 747, mas estão muito melhor equipados do que os DC-4 que nas décadas de 50 e 60 atravessavam o Atlântico tranquilamente. Radares secundários e primários não são necessários senão nas vizinhanças de aeroportos de grande tráfego, como já existem em Belém. E talvez sejam necessários mais dois desses sistemas.
Consideremos agora a questão do contrabando. Os 400 aviões suspeitos que cruzam por mês a Amazônia a altas altitudes, segundo o relato do Ministério da Aeronáutica, não poderiam aterrissar na região, pois lá não existem campos clandestinos de porte. Mas pousam em algum lugar do Brasil.
Ora, então o problema não está realmente na Amazônia. Em algum lugar não há vigilância. O contrabando é indesejável porque significa impostos sonegados e competição desleal com a indústria nacional. Mas o contrabando que possa ocorrer em um ano na Amazônia é certamente menor do que o que acontece em um dia nos aeroportos do Rio ou São Paulo. E só quem nunca esteve na Amazônia pode pensar que a região seja centro de produção de drogas.
O Brasil se caracteriza por uma complacência gigantesca com a entrada de produtos estrangeiros. Nos EUA só pode o turista ou o residente ingressar com US$ 100 em mercadorias e dois litros de destilado. Na Inglaterra, país do uísque, só é permitido meio litro.
Aqui pode-se entrar com US$ 500 em destilados e mais US$ 500 em mercadorias. A fronteira com o Paraguai permitia até há pouco US$ 250, quantas vezes por dia se conseguisse passar. Institucionalizou-se a profissão de sacoleiro. Os contrabandistas de São Paulo se cartelizaram adotando um preço homogêneo (US$ 30 por quilo) e instituíram uma taxa de seguro sobre o contrabando. Com toda essa permissividade, quem acredita que o contrabando pelos céus da Amazônia seja significativo?
Falemos da tal cobiça internacional sobre a Amazônia. Em que consiste? Há duas coisas que poderiam despertar a cobiça de outros países: riquezas naturais e biodiversidade. O fato de a Amazônia estar sendo dissecada em todos os meios de divulgação, inclusive na Internet, é uma prova de que o que existe é antes curiosidade e preocupação conservacionista do que cobiça. Se fosse interesse de apropriação, estaria em relatórios secretos, e não na Internet.
Vamos admitir que o subsolo da Amazônia seja tão rico quanto nossos políticos acreditam e que haja algum país poderoso cheio de cobiça. Para que invadir, gastar dinheiro e irritar a comunidade internacional se o Brasil, nessa ânsia por capitais externos, adotou a legislação mais permissiva possível?
Qualquer empresa estrangeira, se quiser, institui uma mineradora no Brasil e extrai o minério que quiser, sem precisar mais de testa-de-ferro. Outra riqueza potencial é a biodiversidade. Mas biodiversidade é informação genética e a única proteção possível seria por meio de uma legislação patentária adequada.
O campo de batalha para preservação dos interesses nacionais não é a Amazônia, mas os bastidores do Congresso. É ingenuidade instalar uma dispendiosa parafernália de radares na Amazônia para defender riquezas e, como compensação, aprovar a lei de patentes para organismos vivos e a legislação que dá para o capital externo acesso ao subsolo. Com essas leis só um imperialista arcaico violaria nossas fronteiras.
Também sobre queimadas já existe um monitoramento adequado. Se elas continuam, não é por falta de informações, mas por falta de meios para combate e por incultura. Os meios existentes permitem identificar dimensão e local com a mesma precisão que possa vir a ter o Sivam, caso instalado. O que falta, de novo, são os meios para combate. E isso nada tem a ver com o Sivam. Depreendemos que a finalidade real do Sivam não é a proteção da Amazônia, mas da Aeronáutica, que espera com o Sivam vir a ter presença nacional para obter recursos mínimos para operar.
Sem gasolina, com seus obsoletos Mirages despencando, a Aeronáutica brasileira se agarra obsessivamente ao Sivam como sua tábua de salvação. A Aeronáutica tem uma longa e edificante ficha de serviços prestados à região e poderá ela continuar a ser útil. Basta que lhe seja atribuído um orçamento adequado. Mas o Sivam representa uma evasão inútil de recursos financeiros e pressupõe uma outra série de atividades concomitantes muito mais dispendiosas. E os abutres já estão de olho no Sipam, programa complementar ao Sivam.
Se a questão é de soberania nacional, como se explica que a coordenação do projeto e de sua instalação seja entregue a uma empresa que é um apêndice do Pentágono e que tem como subcontratada a E-System, organismo da CIA? E agora complementadas pela Lockheed, empresa especializada em corrupção, que subornou até o primeiro-ministro do Japão. E é a essa gangue que o Brasil vai confiar a sua segurança.
Será que alguém acredita que essas três empresas, viciadas em guerra, espionagem e corrupção, vão permitir que o Sivam retenha segredos para o Brasil?

Texto Anterior: RESSENTIDOS; TRADIÇÃO ROMPIDA; NO PEITO; INJUSTIÇA
Próximo Texto: O Sivam e o "reinventor do transistor"
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.