São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 1995
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'Gaiola' retoma a tradição da comédia

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

Haverá poucos espetáculos que espelhem com igual fidelidade o teatro popular carioca de meados do século, o teatro de revista, o teatro execrado pela história oficial do teatro brasileiro, como "A Gaiola das Loucas", com Jorge Dória.
Talvez "Trair e Coçar", em sua fase de teatro Záccaro, com Denise Fraga levando filas à sala que um dia, aliás, já foi palco dos programas de Chacrinha.
O teatro Gazeta, agora, tem tudo da outra sala, no que mais impressionou, no aspecto popularesco, com as suas centenas de cadeiras, sua iluminação de palco adaptada e mínima, um jeito de sala antiga, sem conservação, mas bem localizada.
A diferença, que pode evitar que "A Gaiola das Loucas" chegue ao fenômeno dos oito anos em cartaz, são os preços, nada populares. Mas a comédia não poderia ser mais.
Para apreciar espetáculo assim, é preciso baixar a guarda.
Os comediantes Jorge Dória e Carvalhinho, que fazem o casal homossexual da boate A Gaiola das Loucas, na Riviera, respeitam pouco a trama original, que não tinha muito como ser respeitada, de qualquer maneira, e menos ainda os diálogos.
O espetáculo é um desfiar de "cacos", de frases de efeito com duplo sentido ou com referências ao cotidiano, que os protagonistas apresentam como comentários à platéia, por vezes subvertendo inteiramente a ação -que, sem ter como prosseguir, termina aos trancos e barrancos quando alguém deixa a cena.
Mas o objetivo não é outro, certamente, do diretor Jorge Fernando.
Um apaixonado da comédia e da comédia musical, o diretor não demorou a entender, com Cláudia Raia, agora com Jorge Dória, passando por "Hair", que no Brasil os dois gêneros ainda não deixaram inteiramente o "vaudeville".
Ainda não se desenvolveram plenamente, como aconteceu com a Broadway e com o West End de Londres, para os musicais de sofisticação na trama e para as comédias verbais ou lúdicas -até por terem enfrentado como que uma tentativa de extermínio, quatro ou cinco décadas atrás.
É como se, com os mesmos Jorge Dória e Carvalhinho de quatro ou cinco décadas atrás, aliás, os mesmos Jorge Dória e Carvalhinho que atuaram em "A Gaiola das Loucas" no início dos anos 70, abrindo o besteirol, Jorge Fernando estivesse em busca de mais uma retomada da tradição da comédia brasileira.
Ou talvez não, talvez queira apenas arrancar algumas risadas sem compromisso, das centenas que vão ao teatro Gazeta. Certamente, não poderia escolher comediantes mais adequados.
Jorge Dória, de voz rouca mas potente, alcançando toda a sala, é como um regente das "loucas" no palco. Com o pulso levemente curvado, num esforço de pouco sucesso para aparentar feminilidade, ele é sobretudo e o tempo inteiro um comediante.
O menor movimento, a mais ingênua palavra ganha um sentido de picardia. Os "cacos" e boa parte do texto tornam-se conversa com a platéia, sem cuidado com os demais personagens, que fazem o possível para não desaparecer.
Como ele, só Carvalhinho, de cuidado ainda menor com a construção do personagem e com a trama.
Com problemas para andar, certamente acima do peso, Carvalhinho mais parece a caricatura do próprio Jorge Dória -mas, como ele, e com maior dificuldade, já que não tem a empatia da televisão, é engraçado a ponto de fazer o espectador debater-se em gargalhadas.

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