São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 1995
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'Terra Estrangeira' exige comemoração

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Terra Estrangeira" é um dos melhores filmes do ano. Não importa a sua nacionalidade. Ele é da terra dos que perdem raízes e rumos. O filme releva, com extrema sensibilidade, dois momentos de adaptação em terras estrangeiras: dos que renegam origens na juventude e dos que se apegam a elas, com obsessão mortal, na velhice. A origem das duas atitudes está no desconforto da decadência e da resignação. A brasilidade do filme é evidente. Mas, como os seus personagens, dispensa passaportes.
Caro leitor, isto não é uma crítica, é uma comemoração. Pela ousadia do cinema brasileiro voltar a falar, sem negar suas próprias raízes, uma linguagem universal. "Terra Estrangeira" é um raro filme brasileiro que não faz da sua nacionalidade uma escusa. Bem-vindos, portanto, ao mundo mágico do cinema. Ao mundo da fantasia e encantamento, onde as verdades ou mentiras alcançam a dimensão da eternidade e onde os fatos são atemporais. Onde a Justiça sempre vence os vilões.
O filme de Walter Salles, co-dirigido com Daniela Thomas, é uma evidência porque a rasante era Collor quis acabar com o cinema para não gerar críticas e rastros de memória. "Terra Estrangeira" resgata este poder. E começa mostrando o presidente Collor e sua ministra da Economia Zélia Cardoso como cínicos protagonistas do golpe do confisco bancário, o pesadelo mortal que acaba com os modestos sonhos vividos no filme pela esplêndida Laura Cardoso.
O esplendor da sua decadência tem como cenário a arquitetura cruel do Minhocão. A idosa personagem de Laura Cardoso tem em que se apegar: a origem basca. E sonha juntar suas míseras economias para voltar a San Sebastián, à terra natal. O seu filho (Fernando Alves Pinto) é a negação de qualquer origem. O Minhocão é a sua referência cultural, com seus edifícios maculados pelo viaduto e os painéis gigantes que anunciam cuecas e calcinhas.
Nestor Almendros, um dos mais brilhantes diretores de fotografia do cinema europeu e americano, quando veio à Mostra Internacional de Cinema em 1984, ficou alucinado com o poder dramático e a terrível beleza plástica deste marco da arquitetura antropofágica de São Paulo. "Terra Estrangeira" honra a sua sensibilidade. E registra imagens indeléveis para a antologia do cinema paulista.
A parte do filme que vaga entre as fronteiras de Portugal e Espanha também faz honra a outro grande marco da fotografia no cinema, Gabriel Figueroa. O mestre mexicano foi discípulo de Gregg Toland (o fotógrafo de "Cidadão Kane", de Orson Welles, há décadas repetidamente votado como o melhor filme de toda a história do cinema) e precursor das iluminações do "film-noir".
A direção de fotografia de "Terra Estrangeira" é de Walter Carvalho, mas Walter Salles confessa que a quase totalidade das enquadrações são de sua autoria. Todo o filme foi rodado com equipamentos de 16mm, mais leves, depois ampliado para 35mm -a bitola dos cinemas. O resultado profissional é mais um avanço para dar agilidade e senso de oportunidade ao cinema brasileiro.
Este raro exercício de riqueza e talento é promissor. Como nos anos 40 e 50, quando o gênero do "film-noir" prosperou graças à liberdade de criação que os produtores de Hollywood lhe davam, por considerá-lo uma arte menor, este vigoroso exemplar do novo cinema brasileiro também ressurge com liberdade total de criação. Graças a uma nova lei de audiovisuais que estimula o mecenato em nosso precário cenário artístico.
A passagem do mundo da verdade para o da mentira é mostrada ainda na parte paulistana de "Terra Estrangeira", quando o apartamento/cenário do Minhocão é inundado pela água que vaza de um chuveiro. Estas imagens de plástica mutante são impressionantes. E marcam a passagem do filme para o terreno da aventura. Ou será que a nossa miséria não tem direito a uns bons momentos de ação e fantasia?
A aventura começa com a entrada de Luís Melo em cena, com um poder de expressão devastador. Seu personagem é contrabandista. Só que rouba todas as cenas, como o Coringa de Jack Nicholson em "Batman". Anula até a participação especial do ator francês Tcheky Karyo.
Ao comandar uma caçada humana, Luís Melo faz Fernanda Torres atingir um estado de graça nos braços de Alexandre Borges -o casal de brasileiros clandestino e marginal em terras portuguesas.
Como a velha basca do Minhocão, no início do filme, chega a vez deles, cada vez mais acossados, de lembrar e se apegar às origens. Inutilmente, mas com a dignidade de "Thelma e Louise". Ou será que só Ridley Scott pode experimentar "road-movies" escapistas? Claro que não. E aí está a prova competente de como podemos ser universais sem perder a identidade.

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