São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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Lógica da emancipação

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI

Ora, se uma dialética transcendental nos mostra tanto a possibilidade quanto a realidade de instituições que repousam sobre ilusões necessárias, então essas instituições não podem pertencer a uma sociedade bem ordenada e não podem ser julgadas justas. Estaríamos fadados a condenar definitivamente o mercado capitalista e voltar ao ideal comunista que prega o fim de qualquer produção sob a forma mercantil?
Por outro lado, todavia, principalmente do ponto de vista da racionabilidade, parece-me evidente que não existe hoje meios de criar riqueza social totalmente desvinculados de uma forma ou outra de mercado. Nada impede Robert Kurz de anunciar, em altos brados, a crise do modo de produção de mercadorias. Nem ele nem ninguém foi até agora capaz de nos dizer como um futuro modo de produção se organizará para evitar a violência da competição capitalista e o estigma do mercado, sem cair na regulamentação autoritária e no fundo ineficaz do sistema produtivo. Qualquer projeto de produção cientificamente planejada, que fosse capaz de ajustar oferta e demanda na base de um cálculo racional prévio, foi irremediavelmente refutado pelos fatos. Isto, porém, nos obrigaria a nos entregar de braços abertos às irracionalidades do mercado e ao fetichismo da mercadoria?
Se para produzir um excedente econômico for preciso, como deve acontecer numa sociedade justa e bem-ordenada, que a desigualdade somente seja admitida se esse excedente beneficiar em maior grau aqueles que se situam na base da escala das desigualdades sociais, então esta forma de produzir deve estar associada a um sistema de distribuição que beneficie precisamente aqueles que forem prejudicados pela competição capitalista.
Produção injusta para que se possa ter uma justa distribuição? Não se estaria recaindo naquela proposta, de triste memória, de que se precisa fazer crescer o bolo para em seguida distribuí-lo? Se nos lembrarmos, porém, dos ensinamentos dos economistas em geral e do próprio Marx de que produção, distribuição, troca e consumo fazem parte de um mesmo silogismo ou, deixando de lado essa linguagem hegeliana, formam uma mesma trama de determinações recíprocas, a dificuldade pode ser formulada da seguinte maneira: como é possível amar um sistema de produção, da produção estrito senso ao consumo, que seja justo e racionável?
Retomemos a questão do fetichismo da mercadoria. Na nossa interpretação, ele provém do erro, comum na metafísica clássica, de atribuir ao real propriedades que convêm ao objeto posto como padrão de medida. Desse modo, a metafísica, por exemplo, engana-se ao afirmar que existem mônadas, objetos simples, meramente porque todo padrão de uma regra, de um conceito, é simples. No caso da produção mercantil, o padrão do trabalho abstrato, vale dizer, o ideal de uma média da produtividade social, firma-se como aquele limite na vizinhança do qual giram de fato os trabalhos individuais para ganharem estatuto coletivo. Ora, existem várias práticas nas sociedades contemporâneas que regulam o mercado de um ponto de vista político. Uma delas é o salário mínimo, assegurando aos trabalhadores o acesso a uma cesta básica de sobrevivência. Qual é o mínimo salário justo?
Segundo Rawls, é possível conviver com a desigualdade de salários desde que todo acréscimo na massa salarial beneficie mais aqueles que estiverem na base dessa escala. Isto na verdade tem acontecido em algumas sociedades contemporâneas, mas mesmo nos Estados Unidos e na Europa essa política atinge as minorias, sejam elas étnicas, religiosas ou de idade, discrepância que se agiganta entre os países do centro e da periferia do sistema como um todo. De um ponto de vista macroeconômico, ainda vale aquela observação de Marx de que o capitalismo gera simultaneamente a maior riqueza e a maior pobreza.
O que nos importa, porém, do ponto de vista da justiça e da racionabilidade, é que já se conhecem mecanismos de intervenção política que podem tornar justos os sistemas de remuneração salarial. Mas são meros conhecimentos que não se assentam em instituições dotadas de relativa transparência e força suficientes para implementá-los. É neste nível institucional, creio eu, que a questão precisa ser trabalhada. Como em outros domínios das ciências, há conhecimentos suficientes para que muitas injustiças vigentes sejam resolvidas, mas falta poder institucional para enfrentá-las de fato.
Ora, os instrumentos que nos oferecem as ciências econômicas e a crítica filosófica da alienação bastam para desenhar instituições compensatórias que, sem pretender ser inteiramente transparentes, cuidem para que o todo tenda a ser justo e racionável. Carecemos de instituições capazes de intervir na política econômica mundial. E, como desde logo se descarta a idéia de que se tenha uma única política correta, justa e racionável, essas instituições só podem ser representativas, vale dizer, permeáveis à diversidade dos interesses e da luta pelo poder. Noutras palavras, para que se conviva com as alienações da produção mercantil, para que seus efeitos sejam cada vez mais circunscritos e podados, é preciso aprofundar o sistema político representativo, em escala regional e mundial, a fim de que ele democratize as decisões de política econômica. Como tenho dito, em vez do Palácio do Inverno, o assalto deve agora ser dirigido ao Banco Central.
Pode-se imaginar por que transformações deve passar o regime capitalista mundial para comportar essas novas formas de representação. Mas será ele ainda capitalismo? Provavelmente não. Sobretudo porque um sistema justo de produção, se não implica uma política de pleno emprego, requer ao menos políticas compensatórias, de tal sorte que todos aqueles que foram separados de seus meios de produção possam se beneficiar de um plano de justiça social e levar uma vida digna e socialmente produtiva. Para que as desigualdades provocadas pelo mercado de trabalho venham a ser consideradas justas é preciso que o produto social resultante compense aqueles que forem os mais prejudicados no início do processo de produção.
Ora, o capital teve o mérito e o demérito de separar o trabalhador, hoje assalariado, de seus instrumentos de trabalho. Se isto permitiu a total subversão da própria atividade do trabalho -assegurando-lhe um aumento tão extraordinário de produtividade, que já está em nosso horizonte uma drástica diminuição da jornada de trabalho-, não é por isso que convenha olvidar o drama daqueles que, sem emprego, se privam dos meios de subsistência. Uma sociedade contemporânea justa implica uma política de distribuição equitativa do produto social. E esse critério não deve ser posto como idéia reguladora de nossa história, mas deve ajuizar cada ato efetivo de nossas políticas cotidianas.
Seria muito interessante estudar mais amplamente as instituições necessárias para que se tenham sociedades justas e racionáveis. Mas aqui também esbarramos com os limites de nosso propósito, e convém voltar à questão da crise da racionalidade. Para que se possa aplicar o critério rawlsiano da justiça equitativa, é preciso separar racional de racionável. É racional que o religioso fundamentalista, cuja maior preocupação é salvar sua alma e sopesar os meios necessários para lograr tal fim, arquitete e cumpra atos de terrorismo, desde que se julgue irremediável e injustamente excluído duma sociedade. Mas é inteiramente irracionável que tome este seu julgamento como o único possível e não participe da discussão e da prática democráticas a respeito dos últimos fins da sociedade.
Vejamos, porém, no que consiste este seu juízo de racionalidade. O outro -que, para levarmos o caso a seu limite, também é terrorista- nega-lhe as razões de sua conduta, assim como os caminhos de sua salvação. Reconhecido o abismo entre eles, a violência é inevitável. Mas a guerra tem lógica. Cabe avaliar o adversário do ponto de vista de sua força bruta, assim como daquele de sua astúcia. E, como argumenta Hobbes, esta é capaz de suplantar qualquer violência cega do adversário. O reconhecimento deste fato, entretanto, não nos leva para o lado do contrato social, porque uma intersubjetividade já foi tecida pelo próprio reconhecimento, a humanidade já está presente até mesmo nas práticas de desencontro. Sendo este um juízo e não apenas uma opinião, pode levar em conta os resultados da prática avaliativa. Quando luta cegamente e sem pensar já está reconhecendo o outro como ser humano capaz de avaliar e de julgar. Portanto, como um membro da humanidade capaz de persuasão, de sorte que a violência nega o que sua prática já está reafirmando.
Esse reconhecimento não se socorre das regras mais gerais do discurso nem apela para uma pragmática transcendental, mas simplesmente faz parte de sua prática de conflito. E nela é possível que alguém venha simplesmente a perguntar: "O que eu estou fazendo?", "O que ele está fazendo?", e desse modo essa mesma prática muda de configuração, na medida em que se abre para uma investigação de seu sentido.
Neste ponto preciso, creio eu, tomo distância dos neo-frankfurtianos que, em vez de entranhar os limites transcendentais numa prática significativa, os lançam para regras de tais práticas, como se entre elas e as regras houvesse apenas uma diferença de tematização, quando me parece que é toda a perspectivação do ato significativo que se altera, quando se passa duma prática simbólica para a análise de seu sentido. As regras só aparecem quando dentro dessas práticas elementares perguntamos por seus respectivos significados.
Este atalho, assim o penso, nos foi aberto por Wittgenstein. Ele não nos obriga a essa distinção lógica entre o racional e o racionável, porquanto, para que se estabeleça qualquer jogo de linguagem -em última instância, qualquer sistema simbólico que firme a distinção entre o correto e o incorreto-, é necessário que se tome certos fatos do mundo como certos e inquestionáveis, que qualquer homem racionável há de reconhecer.
Noutras palavras, racional e racionável se determinam reciprocamente e se instalam ao mesmo tempo. Tudo o que é indubitável para que funcione um jogo de linguagem, no contexto de uma determinada sociedade, pode ser formulado em proposições autenticamente verdadeiras, que não são atravessadas pela bipolaridade do correto e do incorreto -mas desde que essas proposições do jogo de linguagem passem a ser vistas a partir da pergunta a respeito de seu significado. E sempre estamos praticando um determinado sistema simbólico.
Tão logo perguntamos o que as proposições desse sistema significam, somos obrigados a reconhecer certos fatos que todo homem racionável admite. E dentre esses fatos encontra-se aquele que descrevemos, ao dizer que os homens, mesmo quando erram, estão participando do universo do entendimento possível. E se a prática entre os adversários já os situa neste mundo, é tanto racionável como racional pedir-lhes que atentem para o significado do que estão fazendo.
Desse modo, entre eles se abre o espaço da persuasão, não porque este está travado por regras do discurso, mas porque o que fazem já é significativo, desde que a pergunta pelo significado seja feita. Tudo se passa como se, na mesma figura, em vez de uma lebre, víssemos um pato. Aprofundar esse espaço lógico da persuasão e da humanidade, indagar pelo sentido de nossas ações ao mesmo tempo em que nos encastoamos em instituições justas e representativas, é aprofundar a democracia. Não se trata de criar instituições sociais a partir desse fundamento consensual.
A idéia de humanidade não funda nada, e cada sistema simbólico recorta e cria um espaço lógico, que de imediato se contrapõe a outro. Mas o importante é salientar esta dialética do consenso e do dissenso, de tal modo que este reconheça sempre a possibilidade do primeiro e, dessa maneira, crie uma barreira contra a violência bruta, ao mesmo tempo em que abre o horizonte da negociação política. E como esta política necessariamente deve aumentar a visibilidade dos mecanismos sociais de produção, distribuição e consumo da riqueza, nesta sondagem dos fundamentos a democracia passa a operar além dos limites tradicionais do jogo político para se pôr como democracia social.

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