São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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"não somos Raimundos"

MARISA ADÁN GIL

No início, só havia Nando Reis. Às dez e meia da manhã, o baixista de cachos ruivos é o único titânico presente no prédio da Warner, na marginal Pinheiros. A agenda na parede diz: "10h - gravações de vinhetas para rádios". É o primeiro dos muitos atrasos do dia.
Com a chegada de Frommer, já dá para fazer um som. Os dois vão para um estúdio e começam a ladainha das vinhetas. Primeira demonstração de profissionalismo: os Titãs transformam o que deveria ser o nhenhenhém mais tedioso do planeta em tarefa competente. E engraçada. Frommer, o gozador de plantão, assume o comando, saudando ouvintes imaginários e desfiando piadas impublicáveis.
Loira e mulher
Um tira a mesa, o outro lava os pratos. Num casamento de sete, a divisão de tarefas é fundamental. Nando e Frommer passam o bastão das vinhetas para a recém-chegada dupla Branco e Britto, enquanto assumem as entrevistas telefônicas.
Meia hora depois, seis Titãs respondem perguntas por telefone -Charles está gripado e só vai ao ensaio, à tarde. Durante duas horas, trocam de interlocutores como quem aperta parafusos. "Sim, o disco é mais leve." "Não, o Jack Endino não faz só 'grunge'." "O quê? Por que mudamos os cortes de cabelo?"
Essa última sobra para Paulo Miklos, que tem que explicar por que o Charles ficou moreno. Ele não era loiro? "Não só era loiro como era mulher", diz. E baixinho: "Cada coisa que a gente tem que responder..."
"Gosto de gritar"
A sala está na penumbra, mas Britto mantém os óculos escuros. Aliviado, põe o fone no gancho. "Entrevistas são um saco!" Não faça, então. "Tem que fazer, senão fica antipático."
De todos os integrantes dessa banda essencialmente esquisita, Britto é o mais surpreendente. Pulou sem piscar da fragilidade de "Insensível" para o metal gritado de "Titanomaquia". Agora, volta à melodia.
"Na verdade, gosto mais de gritar", confessa, num raro momento de descontração -ele é o mais tímido dos rapazes. Para continuar fazendo o que mais gosta, fundou com Branco o Kleiderman, pesado até a alma. Assim, sempre que quer destruir a garganta, tem para onde ir.
Televisão afinada
"Domingo" é a prova de que os projetos paralelos -além do CD do Kleiderman, os discos solo de Nando e Miklos- cumpriram seu papel: as "bandas dentro da banda" foram expostas. Não é mais preciso esconder as divergências por baixo de um som único, como tentaram várias vezes em 13 anos de carreira.
"Não dava para continuar daquele jeito, não era o que todo mundo queria", diz Britto, referindo-se ao peso de "Titanomaquia". O que eles queriam era juntar sem escrúpulos punk, balada, funk e brega.
"Estamos relaxados", diz Britto. Como nos primeiros tempos -quando ousavam cantar jingles e hits da Jovem Guarda. "Esse disco lembra um pouco o 'Televisão', de 1985. Mas, naquela época, fizemos tudo errado. Éramos muito desafinados."
Mamonas forever
"Vamos falar bem dos Mamonas Assassinas!", proclama Britto. "Vamos!", responde Branco, animado. Velhos de guerra, não entram no jogo dos entrevistadores, loucos por uma declaração bombástica.
"Não é porque eles estão vendendo milhões de cópias que vou falar mal", diz Britto. "Eles lembram bandas dos 80, Língua, Premê. Mas tudo bem, predispõe o público a ouvir bandas novas." O otimismo dura pouco. "A verdade é que, no Brasil, só investem no sucesso garantido."
Os Titãs não estão mais nessa categoria. A preocupação com a divulgação do novo trabalho é evidente. Eles interrogam uma funcionária da gravadora: por que um jornal grande de São Paulo não publicou nada sobre o lançamento? Quando sai aquele anúncio? E as chamadas no rádio? "Dessa vez eles estão cumprindo todos os compromissos direitinho", diz ela mais tarde. Não foi sempre assim.
Cidade Negra
"É dia de descanso/programa Silvio Santos..." Pela primeira vez em uma dezena de anos, os Titãs percorreram todo o circuito "brega" de TV. Foram no Silvio, Raul Gil, Hebe...
"O que aconteceu com o Barros de Alencar?", pergunta Bellotto. O galã do grupo (mais conhecido como o marido de Malu Mader) é também o mais cool: participa de tudo, mas dá a impressão de que não é nada com ele. "Depois da volta, fizemos um show em Londrina que foi um horror", conta. "Estamos engrenando."
São 13h30 e estão todos famintos, mas falta uma entrevista. "Nos próximos shows, vamos tocar 'Querem meu Sangue'", conta Bellotto. "Todo mundo acha que é do Cidade Negra. É uma versão nossa, que está no primeiro disco. Eles regravaram." Afinal, os Titãs sempre fizeram reggae.
Miklos e Britto não conseguem lembrar o que vem depois de "I'm too sexy for my car..." Enquanto eles cantam (e dançam) Right Said Fred na frente do elevador, a confusão é geral. Onde ir? Em que carro? Qual o caminho? Antes que se convoque uma assembléia, eles se dispersam.
Roupa suja
Bellotto é o último a chegar no restaurante, nos Jardins. "Ele sempre se perde", diz Branco. "Mas o Britto é o campeão do atraso", diz alguém.
Na mesa, fala-se mal de todos: da imprensa, de gente da TV, uns dos outros. Com os jornalistas, são implacáveis. As mais faladas são duas meninas de um jornal semanal, loucas para flertar com eles. Ou o "repórter-bicha que ficou horas no telefone com Bellotto. "Como está o seu tocar?, brinca Miklos.
No meio da baixaria, Brito fica sério. Lembrou de um jornalista que disse que os Titãs eram pop. Rock é o Legião Urbana. "'Eduardo e Mônica' é rock?", foi a resposta raivosa.
Diversão é solução
Reunir todo mundo para ir ao estúdio é outra luta. Se as pequenas decisões são difíceis, imagine na hora de gravar um disco... "Acaba dando certo", dizem.
Já no estúdio Nota por Nota, Branco encarna um Jorge Mautner rápido. Na sequência, imita Belchior. E Tetê Espíndola. Diversão é solução: todos entram no coro -até mesmo o recém-chegado Charles.
"Não vai dar, vai foder com a voz!" Branco e Britto defendem sua posição numa assembléia convocada às pressas para decidir se fazem ou não um show matutino -o problema é que eles tocam na noite anterior. Frommer discute. "Se eu tocasse guitarra, também ia achar que não tinha problema", diz Britto.
O som ensurdecedor de "Marvin" põe um ponto final na história. No ensaio, a seriedade retorna. Frommer e Bellotto ajudam Paulo Miklos com a guitarra em "Eu Não Aguento". Trechos de "Domingo" e "Go Back" são repetidos à exaustão.
Vocalistas ensaiam backings, guitarristas trocam solos, dão palpites. Pelo menos aqui, a democracia titânica funciona.
Pais e filhos
Tudo acaba às 18h30. No quintal do estúdio, eles tomam uma cerveja, trocam impressões. Bellotto conta uma história singela. Disse à filha que ia encerrar o show de uma rádio, tocando depois do Skank. "Mas o Skank faz mais sucesso que vocês!", disse Nina, 13 anos.
"Faz, agora", diz Bellotto, sem disfarçar a mágoa. A ironia é dura de engolir: o grupo que primeiro misturou metal, reggae e MPB pode não ter espaço no novo pop/rock brasileiro de Skank, Cidade Negra, Chico Science... "Desculpe a decadência", diz Fromer, se despedindo. "Desculpe não sermos os Raimundos."

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