São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
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mulheres apaixonadas

MARILENE FELINTO

Uma definição de afeto e paixão tirada das técnicas do cinema: que afeto é uma tendência motora sobre um nervo sensível. "Uma série de micromovimentos sobre uma placa nervosa imobilizada", afirma o livro. E continua: uns consideram a admiração como a origem das paixões, precisamente porque ela é o grau zero do movimento, enquanto outros põem em primeiro lugar o desejo, ou a inquietude, porque a própria imobilidade supõe a neutralização recíproca de micromovimentos correspondentes.
Como entender? Bem na sua frente está um homem nu: observar em silêncio a mistura de delicadeza e brutalidade, as mínimas nervuras das bolas do saco, finas, cordas de violino, sensíveis ao mínimo brusco movimento, à dor. Depois, no meio, o membro todo exposto, armado.
Buscar nos detalhes do corpo a explicação para essa bobagem chamada paixão, que vem como um vento, feito de ares invisíveis, do cruzamento de diferenças de temperatura e pressão de não se sabe que regiões atmosféricas. Coisa etérea.
Avião a jato cruzando no espaço uma massa de nuvens: de repente, a inevitável turbulência, só que sem cinto de segurança. Adiante, prenúncios equilibrados de tempestade ou bonança, 50% contra 50%.
Fica-se no meio mesmo da nuvem, mas sem piloto automático, que paixão é nave antiga, revestida em rocha e osso pré-histórico, montada em armadura de velhíssima tartaruga, resistente a todo tipo de modernização, de computadorização.
A aterrissagem será na marra -em suave céu de brigadeiro ou sob raios de tempestade, em pista sem aparelhos. "O que será de nós?", perguntar em silêncio ao homem a quem se abraça, já que será impossível durar tanto um abraço. Durar quanto? O espanto de estar novamente no ar, em vôo, o desafio -coisa de pássaro, afinal- que se prometera nunca mais repetir.
"Você não está com medo?", perguntar em silêncio no ouvido do homem a quem se abraça, sentindo frágeis os músculos nos ombros dele. Apenas pele e nervos sensíveis, indefesos contra qualquer desastre: explicação de nada, garantia nenhuma contra forças maiores.
Como entender? Recusar-se a qualquer ridículo romantismo, pisar na terra. Procurar a explicação na tecnologia, na anatomia, na atmosfera, na história (especialmente na história que se repete), na arte.
Ler e reler o melhor da literatura sobre paixão, a mais corajosa, "Women in Love" (Mulheres Apaixonadas), de D. H. Lawrence: "Fusão, fusão, essa horrível fusão de dois seres, em que toda mulher e a maioria dos homens insistiam, não seria nauseante e horrível de todo modo, quer fosse uma fusão do espírito quer do corpo emocional?"
"(...) Por que não podiam manter-se indivíduos, limitados por seus próprios limites? Para que essa pavorosa oniabrangência, essa odiosa tirania? Por que não deixar o outro ser livre, por que tentar absorver ou fundir ou unir? Que alguém possa entregar-se inteiramente aos momentos, mas não a outro ser".
Afinal, como entender? Que caminho seguir fora este: escrever, reescrever, inventar, reinventar a partir do mesmo tema, transformar tudo em literatura, para sonhar menos, para viver menos, para sentir menos, para ferir menos, para doer menos. Tudo, tudo: menos outro vôo cego.

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