São Paulo, segunda-feira, 18 de dezembro de 1995
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'Boa sorte, sr. Gorsky' é a frase do século

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Boa sorte, sr. Gorsky. Esta enigmática frase de Neil Armstrong, ao pisar a lua, finalmente foi desvendada. E com o fim do mistério creio que o confuso século 20 acabou ficando um pouco mais transparente para que nós que vivemos e sonhamos dentro dele.
A frase de Armstrong se explica por uma outra frase, que ele ouviu quando era ainda menino, espreitando a casa dos Gorsky:
- Sexo oral? Só farei sexo oral contigo quando um dos filhos do vizinho estiver caminhando na lua.
Armstrong tomou o cuidado de divulgar a razão de sua frase depois da morte dos vizinhos. Mas é possível que a senhora Gorsky tenha acompanhado a chegada do primeiro homem à lua e, ela, principalmente, pode ter entendido como ninguém a força misteriosa dessa frase.
Os Gorsky devem ter morado numa casa com jardim e o menino certamente os surpreendeu de noite, com a bainha a calça molhada pelo orvalho. São frases que se dizem na cama, em momentos e posições singulares. Armstrong é discreto o bastante para suprimir detalhes e nos deixar com a cena ambígua, na qual não podemos imaginar com precisão o tom da sra. Gorsky. Estava irritada, respondeu com suavidade, fechou os olhos como se visse uma estrela e fizesse um pedido: os meninos do vizinho caminhando pela lua?
Tantos poemas e canções lamentando a perda da lua, subitamente arrancada de seu romantismo, transplantada para a esfera da ciência e da tecnologia. E a primeira frase, do primeiro homem estará para sempre inscrita na sua história: boa sorte sr. Gorsky.
Boa sorte, sr. Gorsky, agora que chegamos aqui é sua vez de viajar: novas luas e galáxias, lácteas vias.
Sem o peso da gravidade, por que não desejar também boa sorte sra. Gorsky? Se todas tivessem seu poder de profecia, se virassem a boca para nós, "só quando o menino do vizinho tiver um emprego, só quando tiverem uma boa escola..."
No momento da decisão, a sra. Gorsky fez uso da palavra e manifestou um desejo. A sublimação do século se pôs em marcha e o menino do vizinho começou sua longa jornada para lua.
O foguete subindo para os céus lançando o veículo espacial na imensidão cósmica e frase de Neil Armstrong de repente une a superfície da lua ao úmido jardim das casas dos Gorsky, aos sussurros do quarto de dormir.
Boa sorte, senhor e senhora Gorsky, não pensávamos que era preciso ir tão longe para encontrar a centelha da vida. Mas agora que a encontramos, boa sorte, tomando é claro as precauções que ainda não precisávamos no tempo em se pousou na lua.
Boa sorte, senhor e senhora Gorsky, não subestimem o filho do vizinho, mas também não chorem o leite derramado. Temos tudo para dizer que apesar da recusa, aquela foi uma das poucas noites de amor que ficarão para sempre na história do universo.
Apenas algumas décadas separam os Gorsky de Hugh Grant e Divine Brown. Conquista da lua, escândalos nos talk-shows, quem se dispor a traçar a breve história do sexo americano terá como ponto de partida um estudo comparativo entre os dois. Ambos irremediavelmente colhidos nas malhas do século 20 são gestos orais, gestos de um tempo onde o sexo passa a ser o objeto do discurso. Ao negá-lo a senhora Gorsky apontou para um extraordinário esforço reparador do prazer reprimido: a conquista da lua. Ao aceitá-lo, sob contrato, Divine Brown viveu, ao mesmo tempo, os rigores da pressão policial e a chance de falar a milhares de microfones, estrela de 15 minutos.
Quando amantes diziam uns para os outros "meu bem, leve-me para a lua" sabiam o que estavam dizendo. A ciência, na verdade, apenas comprovou suas intuições -a lua é dos namorados.
Resta aos historiadores do futuro investigar as milhões de frases ditas na cama, reescrever a história das conquistas humanas e reelaborar os monumentos que enfeitam nossas praças. Os lábios da sra. Gorsky teriam um espaço garantido nos planetários das metrópoles. Telescópios varreriam galáxias distantes que já não existiriam apenas como simples acidentes naturais -nádegas, seios e frases amorosas estariam para sempre integradas às suas órbitas.
Posso imaginar no futuro, a professora da história geral da sublimação, tirando os óculos e encarando os alunos com um sorriso enigmático: "Vocês querem mesmo conhecer a origem do cometa Halley?"

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