São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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A melhor parte do país

LUÍS NASSIF

O primeiro contato de Mariana com o Brasil deu-se há pouco mais de um mês, na porta de um shopping center da cidade de São Paulo.
Com um grupo de colegas, adolescentes como ela, armou-se de câmara de vídeo para tomar depoimentos de homens de negócios, sobre o tema "o que você daria pelo seu país" -algo que permitisse medir o nível de confiança dos empresários no país.
O primeiro entrevistado, um senhor de ar grave, não se mostrou propriamente um poço de esperança em relação ao país.
"Se bobear, na hora de assinar o contrato com o Brasil, vão empurrar cláusulas falsas", declarou o entrevistado, para mocinhas um tanto decepcionadas com a falta de fé.
O entrevistado seguinte, um surfista queimado de sol, demonstrou um notável nível de percepção sobre o país.
"Pôrra, morena, este país é o maior barato. Lá onde eu pego onda só tem gente boa."
As mocinhas concluíram que o surfista tinha duas coisas em comum com jacarés: gosto pela água e tamanho do cérebro.
Sorrisos luminosos
Um tanto desanimadas com a maneira como seus primeiros entrevistados encaravam o país, as jovens repórteres pararam para reavaliar o trabalho, quando foram abordadas por um grupo de meninos de rua, criançada encardida de sujeira, mas de sorrisos luminosos, que faziam ponto na porta do shopping, e estavam curiosos em saber se as alunas eram de alguma televisão.
O faro incipiente de repórteres falou mais alto, e o grupo percebeu que encontrara finalmente seus personagens.
Os meninos foram colocados em fila para responder às perguntas.
"O que você acha de ser brasileira?", perguntaram para a menina de rua, de pouco mais de dez anos. "Amo meu país. Mesmo morando na favela da Berrini, perto do tiroteio, amo meu país".
A declaração saía espontânea, esparramada, feliz. Em outras bocas soaria piegas, não naquela meninada sorridente e suja.
O segundo entrevistado, um menino de sete anos, não deixou por menos. "Eu gosto desse país porque mesmo com minha idade já tenho um emprego para mim", declarou. A amiguinha, do lado, contou que o menino era catador de bolinhas em uma quadra de tênis. "Ganha um salário mínimo", comentou entusiasmada. "O que você faz com o dinheiro?", perguntaram as repórteres. "Dou para minha mãe, que compra comida congelada gostosa."
Piscinas e pontes
Outra menina, de 11 anos, entrou na conversa, também entusiasmada com "o meu país". "Moça, você sabia que arrumei lugar para morar debaixo de uma ponte?", dizia, com ar inexplicavelmente feliz, para moças aturdidas com o que ouviam. "Tem até uma piscina lá". A inexperiência das repórteres impediu de se saber que raios de piscina era essa.
Um daria um pote de ouro pelo Brasil. Outra argumentou que jóia valia mais. A moradora da Berrini não daria nada, porque na favela onde morava havia pessoas ruins, e se ela aparecesse no filme essas pessoas iriam à noite no seu barraco, para pegá-la.
A entrevista terminou com a menininha de nove anos pedindo para fazer o papel de entrevistadora. "Deixa eu entrevistar porque quando eu crescer vou aparecer na televisão, e não será como ladrão."
A moçada bem vivida voltou para casa com outra percepção sobre o Brasil real que conhecera. Não tinham dúvidas de que a melhor parte do país estava ali, nas esperanças, nos sentimentos, na solidariedade e na garra daqueles meninos de rua, que enfrentavam o mundo sem perder a solidariedade, a esperança e a ternura. Com um mínimo de oportunidade, teriam muito mais a oferecer ao país do que as senhoras emplumadas, os executivos céticos e os surfistas anencéfalos que entravam no shopping pela porta da frente.
Apenas tinham dúvidas sobre quanto daquelas esperanças se realizaria.

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