São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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AMÉRICA NUESTRA

GLAUBER ROCHA

Juan não veio para me matar? Quero morrer pelas mãos de Juan, não pelas mãos do povo; mãos sujas não cortarão a minha carne, lábios sujos não sugarão meu sangue

Bolívar - Juan, sobrevoe as aldeias, jogue os boletins da rebelião final. Depois entre em Eldorado, reúna operários e estudantes, deflagre a revolução nas ruas. Numa semana nos encontraremos.
Juan olha Bolívar.
Bolívar - Já sabe. Se for preciso matar seu próprio irmão ou seu próprio pai, mate. Se for preciso, dê até sua própria vida.
Juan - Nem o fogo... (o poema da guerra) (2)
Sequência 43
Juan num avião, um caça. O piloto. Jogam panfletos.
Sequência 44
Juan diz mensagens pelo rádio.
Sequência 45
Dois aviões fecham sobre Juan.
Sequência 46
Juan metralha.
Sequência 47
Juan escapa.
Sequência 48
Sobre Eldorado. Aviões.
Juan pula de pára-quedas.
Sequência 49
Legenda: A revolução triunfa.
Sequência 50
Corredor da prisão.
Alto comanda uma rebelião. Tiroteio. Numa rua, Alto atira.
Sequência 51
Juan disfarçado entra na TV. Dribla várias pessoas. Entra no gabinete de Júlio, que telefona.
Júlio - Sim, Diaz, os radicais fugiram da prisão de Palomas.
Juan - Não há tempo.
Júlio - Apóio Bolívar. Ajudei a fuga de Alto. Já lutam nas ruas. Os estivadores se levantaram.
Juan - Aos transmissores.
Os dois saem para os transmissores. Um funcionário tenta atirar em Juan, é abatido.
Nos transmissores. Juan começa a transmitir pela televisão uma mensagem revolucionária.
Sequência 52
Uma rua. Um carro com dois estudantes em cima, atirando.
Sequência 53
Outra rua. Estudantes jogam bombas feitas com garrafas.
Sequência 54
O Exército atira.
Sequência 55
Alto, em cima de um jipe, com mais outros. Armados, chegam numa curva. Tiros. E assim, sucessivamente, vários planos.
Sequência 56
Diaz no palácio; toca piano. Já se ouve a metralha, o piano abafa.
Diaz - Agora, Sílvia, comporei meu grande poema.
Diaz começa a tocar e, em voz alta, a declamar uma lamentação: "nossa América não é uma nova Grécia". Termina.
Diaz - Sílvia, deixa-me beijar teu corpo nu pela primeira e última vez. Esta será a única vez que beijei o corpo nu de uma mulher.
Sílvia vai se despindo.
Sequência 57
Planos diversos. Massa correndo. Atualidades, cinejornais de escaramuças latinas com a polícia.
Sequência 58
Num jipe, numa estrada, Bolívar correndo entre filas imensas de camponeses armados.
Menino canta:
São mil logo um milhão
os guerreiros da montanha.
A massa entra no palácio. Alguns soldados morrem, outros se rendem e aderem. Diaz beija Sílvia. Ouve os rumores. Diaz se levanta e fala.
Dias - Fuja, Sílvia, para contar ao mundo os últimos momentos de um grande homem!
Sílvia foge. Diaz lhe entrega um saquinho.
Diaz - São fios do meu cabelo, pedaços de minhas unhas, os restos...
Sequência 60
Diaz mete a faixa presidencial. Pega uma metralhadora. Senta-se na cadeira de alto espaldar.
A massa força a porta, entra, pára diante de Diaz. Silêncio. Alto aparece. Silêncio.
Diaz - Onde está Juan Morales? Onde está Juan Morales?
Alto - Juan ainda combate nas ruas!
Diaz - Juan não veio para me matar? Não veio? Eu quero morrer pelas mãos de Juan. Eu não quero morrer pelas mãos do povo. Mãos sujas não cortarão a minha carne, lábios sujos não sugarão meu sangue.
Diaz faz fogo, metralha alguns. Alto e outro fazem fogo, repetidas vezes. Diaz pula e estrebucha cheio de balas.
Alto - Viva a liberdade!
Sequência 61
Bolívar entra triunfante na cidade.
Sequência 62
Juan transmite a chegada de Bolívar, chefe e libertador.
Sequência 63
Alto senta-se numa cadeira e assina um decreto.
Alto - Fico proclamado presidente provisório.
Sequência 64
O jipe de Bolívar pára no meio da praça. Já está junto a Juan e Júlio. Entram os três no palácio. Vão subindo as escadas. Há uma tremenda força nesta sequência.
Sequência 65
Legenda: A noite do governo provisório.
Travelling pelos corredores e salas do palácio. Há um clima de festa, alegria, euforia.
Acorrem todos os bajuladores de última hora para render homenagem a Bolívar. Como se fosse um carnaval grotesco. Um líder camponês abre a cena.
Camponês - À meia-noite viremos até a praça esperar as terras prometidas. Faremos depois uma procissão de joelhos até Alecrim para agradecer à Virgem.
Um padre - Que seria deste povo sem a fé? Que seria dos aztecas, dos maias, dos incas? Que seria de toda uma raça? A fé! As almas, don Bolívar!
Banqueiro - Trago meus préstimos. Meus cofres estão abertos a vossos interesses, aos interessados da Revolução.
General - Quando triunfa a tática, vence a estratégia. Eu sabia que o exército de Diaz era precário. Enferrujados os fuzis, emperrados os tanques, debilitados os aviões... As doações da First Company eram pura mentira.
Neste clima, que vai crescendo (impossível de ser descrito num roteiro), as beatas beijam os pés de Bolívar e o consagram.
No fundo, Alto, vendo estas coisas, chama Júlio para uma reunião em outra sala.
Sequência 66
Alto, dois militares, Júlio.
Alto - Como você já deve ter notado, o personalismo...
General 1 - Precisamos evitar um novo ditador.
General 2 - Eldorado precisa de eleições livres.
Alto - Não creio que seja o caso de eleições.
Júlio - Não entendo. O chefe natural deve ser Bolívar. Ele é o Comandante da Revolução.
Alto - Em termos. Não seja romântico.
Júlio - E mesmo com eleições, o povo elege Bolívar.
Alto - Este é um problema para uma consulta partidária. Devemos ouvir os líderes.
Júlio - Absurdo! Não vêem que lá fora já o consagram.
Alto - Um novo Diaz? Foi para isto que lutamos?
Júlio - Mas Bolívar é um libertador...
General 1 - Um bandoleiro.
General 2 - Um aventureiro.
Alto - Um arrivista.
Júlio - É vergonhoso! Estranho que homens como os senhores sejam tão sórdidos, pusilânimes.
Alto - Cuidado com as palavras! Muita coisa pode acontecer nesta madrugada.
Sequência 67
Bolívar, cercado de homenagens, querendo se livrar delas. Entra Júlio na sala, Juan vai até ele; conversam ao fundo.
Juan vem até próximo de Bolívar. Está preocupado. Como se percebesse desgraças. Juan dá um tiro para cima. Assusta a todos.
Juan - Nosso chefe precisa descansar.
Todos compreendem e vão saindo, fazendo reverências. A sala fica vazia. Bolívar está exausto. Juan se aproxima dele.
Juan - Devemos começar o último ato. O mais difícil.
Sequência 68
Travelling por dentro de outra sala do palácio. Mr. Morgan conversa com dois generais.
Mr. Morgan - Bolívar não pode assumir a chefia.
General 1 - Ninguém o quer, nem os radicais.
Mr. Morgan - Devo falar às duas com o Escritório Central da First. Se Bolívar assumir, teremos de agir.
General 2 - Fique tranquilo.
Mr. Morgan - É questão de horas. Eu quero poupar uma humilhação à Eldorado.
Sequência 69
Reunião. Todos estão sentados. Alto fala.
Alto - ... nossa revolução terá de ser radical. Sem temores. Sacrificar até nossa própria vida. Se agora não formos até o fim, amanhã lamentaremos as hesitações...
Bolívar. Júlio. Juan.
Padre - Proponho que indiquemos um triunvirato militar para preparar as eleições.
Juan - Proponho que o presidente seja Bolívar. Ele já o é, ele conquistou Eldorado.
Alto - Eu abati Diaz. Tenho a ver com as decisões.
Militar - A democracia militar não está de acordo com a usurpação radical de esquerda.
Alto - Não existe radicalismo de esquerda. Existe a verdade histórica, inalienável.
Juan - Bolívar não fez uma revolução para ficar fora do seu comando.
Surge uma discussão deste nível. Bolívar se levanta no meio, e se faz silêncio.
Bolívar - Senhores, recuso-me a falar em reuniões fechadas. À meia-noite irei até a praça falar ao povo e colocarei meu poder em suas mãos. Se não me quiserem, voltarei para outras montanhas onde precisem de mim. Se me quiserem, ficarei. Por enquanto, o único verdadeiro presidente é o povo.
Todos ouvem as palavras de Bolívar. Alto consulta os generais a seu lado e toma a palavra.
Alto - Certamente bonitas e heróicas as palavras do general Bolívar. O senhor esquece porém que outras alas dirigentes de Eldorado lutaram para derrubar Diaz. E que estas parcelas, estes partidos, têm direito de influenciar na escolha legítima.
Júlio - Quem é você para pôr em dúvida a legitimidade do governo de Bolívar?
Alto - E quem é você para defendê-lo tão ardorosamente? Você, como todo o ministério de Diaz, é um negocista, corrupto.
Júlio - Eu paguei pela sua libertação. Eu sempre estive contra Diaz.
Alto - Você aderiu, você mudou mil vezes de posição. O seu jogo é sempre o de vencedor. Como todo o ministério de Diaz, você deve ser fuzilado. Não dou ouvidos a você.
Generais - Ao paredão!
Generais - Morte ao ministério!
Júlio - Já tramam os senhores um golpe contra Bolívar? Já tramam os senhores a morte daqueles que colaboraram e apoiaram?
Bolívar - Senhores, outra vez vos advirto: esta não é uma linguagem própria de homens civilizados. Eu não acredito em vossos motivos idealistas. Eu me recuso a participar de tamanhas mesquinharias. Eu nada farei antes da meia-noite, antes de ir à praça.
Júlio - Não faça isto, Bolívar! Eles me matarão. Depois, Juan. Depois, você!
Bolívar se retira como um herói, impassível. Juan está perplexo. Juan grita.
Juan - Bolívar, é uma loucura!
Bolívar sai e bate a porta.
Alto - Ao "paredon"!
Generais - Morte! Morte! Morte!
Júlio - Eu exijo um julgamento! Juan!
Alto - Juan será o próximo, um anarquista.
General - Procedamos rápido. Que venha todo o ministério.
Como uma fera, o general bate na mesa. Plano de Júlio.
Júlio - Eu joguei as cartas da lógica. Eu amo minha terra.
Sequência 70
Sobre as palavras de Júlio, tiros de fuzil. Planos rápidos de pessoas sendo fuziladas. Alto tomando café. O povo se aproximando na praça, numa procissão.
Sequência 71
Sala. Juan e Bolívar.
Juan - Porque você abandonou aquela sala? Porque você não depõe todos eles? Está morrendo um homem por minuto. Mataram o Júlio.
Bolívar - Poeta, uma vez você me perguntou o que eu faria com Eldorado. Eu não lhe respondi, nem vou responder. Mas você me verá ir até aquela janela e proclamar um novo regime.
Juan - Bolívar, pense antes. Eles não querem isto, eles não apoiarão. Você não pode fazer estas coisas sozinho. Você precisa de política.
Bolívar - Deixe que eles se mordam como cães.
Juan - Onde está a sua lucidez?
Bolívar - Estou cansado. A morte para mim é uma sombra diária. Mas eu preciso...
Juan - Bolívar, você já sabe que a First Company invadirá amanhã? Você já sabe que vão fazer conosco o que fizeram há 30 anos atrás? Bombardeios, trucidamentos... nossos sonhos reduzidos a cinzas... Ah! não tem saída!
Bolívar - Sabia de tudo antes mesmo de dar o primeiro passo. Mas temos de ir até o fim, além de homens e de fatos determinados. Não me importa que a burguesia seja aniquilada se amanhã puder dar ao povo uma vida digna...
Juan - Você dá razão ao Alto?
Bolívar - Eu fraquejei quando saí daquela sala.
Juan - Como?
Bolívar - Eu condenaria Júlio. Não o fiz por você, por amizade. Um chefe, Juan, não pode ter amizades. Ainda mais quando este amigo é a voz da Revolução.
Juan - Você me sacrificaria?
Bolívar - Não podemos parar diante dos dramas individuais.
Juan - Eu só me interesso por eles. Eu sou fraco, eu amo o homem que compõe a massa, eu sabia disto, mas não queria acreditar... Bolívar, você está livre de minha sombra. Demito-me da junta...
Juan se retira, cambaleante, da sala. Música.
Sequência 72
Juan anda pelas ruas. A praça está deserta. Outra rua. Nesta rua há farras, cantorias e bandeiras. Juan vagueia. Passa por um cabaré, é saudado com vivas. Juan é o poeta da Revolução. Procura Amor. Não a encontra. Anda em círculos, gira, diz ao Menino.
Juan - Diga a Amor... Não, não diga nada. Entregue isto a ela se a encontrar.
Juan escreve:
Eu estou morrendo agora,
Eu estou morrendo no centro desta hora.
Pela minha vida a minha morte chora.
Juan vaga, rumo à casa de Júlio.

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