São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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Uma pedagogia parada no tempo

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITOR DE OPINIÃO

Passados quase 10 anos de minha formatura e mais de 15 desde que concluí o segundo grau, aventurei-me, este ano, a prestar o vestibular da Fuvest. Foi uma excelente oportunidade para tentar pensar o que é, hoje, o segundo grau.
Eles estão todos loucos, foi o que pude concluir. Apesar de ter uma formação humanística, deveres de ofício e gosto me levam a manter-me minimamente atualizado com o que acontece no mundo das ciências.
Tudo o que cai no vestibular ou é superficial, ou errado ou inútil.
Tome-se a física como exemplo. No segundo grau, o mundo é newtoniano. "Mutatis mutandis", é como tentar aprender medicina a partir dos textos de Hipócrates. Sem querer depreciar o pai da medicina, cuja prosa muito admiro, é a melhor receita para levar o paciente à morte.
É evidente que não se pode compreender Einstein sem um mínimo de Newton. Isso, porém, não justifica que se pare no tempo. O universo newtoniano, como é óbvio, dá conta de todos os problemas que um engenheiro ou um eletricista têm de enfrentar aqui na Terra, mas também o modelo ptolomaico (geocêntrico) permitia prever com precisão todos os fenômenos astronômicos. Aliás, dizer que a Terra gira em torno do Sol -dogma do segundo grau- é algo que também não faz muito sentido na física relativística.
Na química, então -aliás a divisão física e química é por si só discutível-, contam-se mentiras. Elétrons, prótons e nêutrons são partículas indivisíveis. Ué, onde estão os quarks, léptons, hádrons? Se é para dizer mentiras, então sugiro voltarmos ao atomismo de Demócrito. Ele, ao menos, é mais elegante.
Nas humanidades, então, o problema é talvez mais difícil de resolver. Num teste de múltipla escolha, ou se preparam questões absolutamente superficiais, nas quais uma única alternativa é inequivocamente correta, ou então a prova "toma partido" em favor de uma determinada corrente historiográfica ou de interpretação literária.
A biologia do secundário continua nas ervilhas de Mendel, enquanto milhares de cientistas estão literalmente brincando de deuses e criando novos seres.
É verdade que criticar é fácil. Concordo igualmente que não cabe ao segundo grau -nem ao terceiro- formar polímatas que dominem todos os segredos do universo. Parece, contudo, ter havido uma inversão. O vestibular não está mais medindo aquilo que se considera uma formação adequada, mas está ele próprio pautando as escolas, que se transformaram em ninhos de exercícios de mecânica newtoniana e eletricidade que só interessam a engenheiros, militares, relojoeiros e eletricistas.
Por que não ensinar um pouco de cosmologia, por que não ministrar um bocadinho de epistemologia, para que se tenha idéia de como caminha a ciência?
Não pretendo aqui, nem tenho competência para tal, estabelecer o currículo do segundo grau, mas acho que ele deveria ao menos ser discutido com transparência para toda a sociedade. Assim eu não teria a sensação de ter perdido três anos de minha vida aprendendo a fazer exercícios de mecânica que, garanto, não me fizeram nenhuma falta durante 15 confortáveis anos.
A vida é curta e o saber é longo. Para não recair no erro do autodidata de Sartre, seria importante escolher melhor o que se deve ensinar e o que se deve aprender. A mecânica para os mecânicos, e, para os jovens, uma formação.

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