São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
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O cinema na boca do vulcão

JOSÉ CARLOS AVELLAR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para melhor aproveitar a leitura de um roteiro talvez seja necessário imaginá-lo como um texto escrito para não ser lido. Como anotação pessoal. Como um rascunho. Como algo que nem deixou de ser texto nem começou a ser cinema. Como transcrição imprecisa de um sonho ainda não sonhado.
Imprecisão talvez não seja a palavra certa, mas talvez seja a imagem certa.
Um roteiro é um texto naturalmente impreciso. E a imprecisão, nele, não resulta de uma qualquer falha de redação: é a sua essência, é o que torna a leitura agradável. Ele se quer assim, esboço quase precário, para melhor transformar o leitor num participante ativo, num cúmplice do realizador na construção do filme que ali, no papel, mal começou a ser planejado.
Um roteiro só aparece em sua forma definitiva quando desaparece de todo, quando se dilui na imagem e som em movimento na tela. Até então vai sendo continuamente ajustado, retocado, transformado. Passa por diferentes versões e jamais termina. Nem mesmo a versão usada para orientar a filmagem pode ser tomada como a definitiva: quando parece que está pronto, o roteiro pode ainda ganhar uma nova situação anotada às pressas, cobrir-se de indicações técnicas -como se o texto precisasse ainda ser adaptado para o cinema- ou até mesmo ser deixado de lado, como se nunca tivesse existido -ou como se tivesse existido apenas como uma radical provocação ou desafio para a invenção de um filme não necessariamente igual àquele anotado no papel.
"América Nuestra", por exemplo, como tudo quanto é roteiro, talvez até um pouco mais do que tudo quanto é roteiro, é um texto que quase se nega enquanto texto: não diz como é a chegada de Bolívar ao Eldorado, anota simplesmente que o clima de festa deste momento não pode ser descrito num roteiro. E, roteiro jamais transformado em filme, ele parece ter sido um radical desafio ou provocação dos filmes que Glauber inventou depois de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" -uma espécie de roteiro de todos os roteiros seguintes.
A idéia surgiu em janeiro de 1965, em Roma. Glauber acabara de debater sua Estética da Fome no seminário "Terzo Mondo e Comunità Mondiale", parte da programação da Quinta Rassegna del Cinema Latino Americano, organizada pelo Columbianum em Gênova.
Em nove páginas datilografadas, a ação dividida em seis tempos e 26 sequências, Glauber anotou pouco mais que uma sinopse de um projeto que se chamaria "América Nuestra, a Terra em Transe". Em abril de 1966, no Rio de Janeiro, retomou este esboço e desenvolveu um texto mais próximo de um roteiro de cinema -as cenas e os diálogos que seguem, e que são mais uma livre reinvenção do que propriamente o desenvolvimento natural da primeira anotação.
Antes disso, no entanto, esta idéia que não chegou a se transformar em filme gerou um novo projeto ou se desdobrou num outro roteiro. Ainda em Roma, Glauber começou a escrever "Terra em Transe", história semelhante à de "América Nuestra", mas ambientada no Brasil, entre o mar do Rio de Janeiro e o sertão do Nordeste, e não no imaginário "Eldorado, país interior, Atlântico", como indica a legenda de abertura do filme efetivamente realizado em 1966/67 com este título (depois de duas ou três novas versões do roteiro).
"Terra em Transe", o filme, parece resultar a um só tempo da primeira versão escrita em Roma, da versão do roteiro levada para a filmagem e da idéia de "América Nuestra". Não se trata da mesma história, mas de um mesmo conflito ilustrado por diferentes histórias. Glauber, por isso, pôde reunir sem problemas elementos de um, de outro e de outro de seus esboços.
"Terra em Transe" conta mais ou menos metade da história que Glauber pretendia contar na primeira versão de "América Nuestra". Ou melhor, porque não se trata simplesmente de uma história contada pela metade ou por inteiro: a análise da divisão entre poesia e política, no roteiro não filmado, não se interrompe ali, na imagem do poeta ferido, o braço erguido, a metralhadora, contra o céu e o chão de um branco intenso.
Examinando apenas os textos, na versão de "América Nuestra" aqui publicada; na primeira versão de "Terra em Transe", a de fevereiro/março de 1965 (em "Roteiros do Terceyro Mundo", Alhambra/Embrafilme, 1985); e na que orientou a filmagem (cópia do acervo do Tempo Glauber) encontramos, com pequenas diferenças, personagens, diálogos e situações comuns em torno de um jornalista -Paulo Martins ou Juan Morales- dividido entre a poesia e a política.
O que temos nestes três diferentes textos não são cenas repetidas e retrabalhadas para aperfeiçoar a idéia. Ao contrário, é como se a cada nova tentativa, Glauber tivesse decidido começar tudo de novo, partir do zero. É como se estivesse escrevendo para si mesmo, improvisando, procurando a história ideal de dizer que o cinema deveria ocupar um espaço entre a poesia e a política, nem num ponto nem noutro, mas numa constante tensão entre uma coisa e outra.
"No que me diz respeito" -explicou Glauber em carta a Alfredo Guevara, então diretor do Icaic (Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficas)-, "minha atividade política nascia de minha visão cinematográfica e não da simples instrumentação didática de meu trabalho ou de uma possível comercialização".
Um cinema entre a poesia e a política:
Uma sensação esboçada com a experiência de "Barravento" -a consciência dos "problemas primários de fome e escravidão regionais" e a possibilidade de decidir entre a ambição de artista "e uma função lateral do cinema: ser veículo de idéias necessárias"; a consciência de que o "cinema só será quando o cineasta se reduzir à condição de poeta e, purificado, exercer o seu ofício com seriedade e sacrifício".
Uma sensação que se firmou com a experiência de "Deus e o Diabo" e com a Estética da Fome, a consciência de que um cinema novo só poderia nascer de um cineasta "pronto a pôr seu cinema e sua profissão a serviço das causas importantes de seu tempo"; a consciência de que "somente uma cultura da fome, minando suas próprias estruturas, pode superar-se qualitativamente: e a mais nobre manifestação cultural da fome é a violência".
Parte importante da história ideal para discutir esta questão aparentemente surgiu com a idéia de filmar "América Nuestra", e por isso, mesmo se desviando do projeto para realizar outros filmes, Glauber não abandonou a história de Juan Morales, Diaz, Júlio Fuentes, Bolívar. Escreveu novas versões e tentou seguidamente filmá-las pelo menos em 67, em 69, em 71, em 72 e em 73.
No primeiro esboço de "América Nuestra", o projeto escrito em Roma, em janeiro de 1965, a história começava numa sala de cinema em Paris.
"Montagens gráficas: um prólogo de atualidades representando o mundo latino-americano. Imagens bem selecionadas, expressivas, de índios, negros, mulatos, gaúchos, vaqueiros. Vários sons, todos os ritmos dos vários países misturados. Máximo de dramaticidade." O título do filme entraria sobre estas imagens e, durante os letreiros, a câmera se afastaria da tela para revelar a sala de projeção, em que se mostrava um filme como complemento de uma conferência. Entre os espectadores, "Juan Morales, jovem latino-americano, 30 e poucos anos, mas com ares europeus. A câmera se detém em Juan, que fixa, meditando, a tela branca onde acabara de ver imagens terríveis do mundo que abandonara".
A idéia de Juan como um latino-americano em Paris, meio poeta meio interessado em cinema, é abandonada em seguida -no texto de abril de 1966-, mas retomada numa outra versão, 14 páginas com a descrição das sequências e ligeira indicação dos diálogos, escrita provavelmente em 1971 ou 1972 para ser filmada em Cuba: Juan sairia de Paris para Havana.
Na realidade, Glauber continuou trabalhando "América Nuestra" depois do roteiro publicado nesta edição do Mais! e da realização de "Terra em Transe" pelo menos até a metade dos anos 70. São pelo menos mais seis tratamentos escritos em Paris, em Roma e no Rio. Um em inglês, um em espanhol, quatro em português -nenhum deles muito extenso é verdade. E mais, dois cadernos com anotações diversas -diálogos, nomes de possíveis intérpretes, indicações de cenários, descrições de cenas- e muitos desenhos: às vezes um quase "storyboard", outras uma figura de poucos traços se repete: um homem de duas cabeças, um pouco do cangaceiro de duas cabeças de "Deus e o Diabo", uma matando a outra pensando, um pouco do "neo-surrealismo" resultante da "dualidade intelectual do latino-americano entre o romantismo e o racionalismo". Além disto, as referências em cartas ao Icaic, e os comentários escritos em 1969 e publicados em "Revolução do Cinema Novo" (Alhambra/Embrafilme 1981, págs. 130-138).
Nas versões escritas depois de 67, um novo personagem: El, "um gaúcho solitário, um típico herói latino-americano", um personagem que "poderia ser Don Quixote ou Che Guevara". E antes de tudo um prólogo: "Síntese documental sobre la decadencia histórica impuesta por la civilización". Na história, em linhas gerais, Bolívar, depois de derrubar a ditadura de Diaz, cederia o governo a um presidente pseudodemocrata e Juan voltaria para as montanhas para lutar ao lado de El. Ou Bolívar seria um herói libertador do começo do século, e El o que enfrenta a ditadura de Diaz. As mudanças na história contada não alteram no entanto o que Glauber queria contar, a divisão entre poesia e política.
"Para nós, latino-americanos, que somos colonizados cultural e economicamente, nosso cinema deve ser revolucionário do ponto de vista político e poético, isto é, temos que apresentar idéias novas com uma linguagem nova. 'América Nuestra' não pretende ser um filme didático, mas uma manifestação, um filme de agitação, um discurso violento e também uma prova de que, no terreno da cultura, o homem latino, livre da exploração colonialista, é capaz de criar" disse em carta a Alfredo Guevara.
"Poema épico, representação teatral, comentário, polêmica, política na América Latina. A estrutura se parecerá com a de 'Outubro'. Multiplicar Eisenstein por ele mesmo. Documentos e personagens. Mas os personagens históricos, de Bolívar a Che, se conservarão à distância e só abordarei as contradições dos personagens menores", anota num dos cadernos, ao lado de uma série de referências a possíveis atores: Geraldo Del Rey poderia fazer El. Lautaro Murua ou Francisco Rabal, Bolívar. Rosa Maria Penna, Amor. Danusa Leão, Sílvia. Raul Cortez, o padre. Anselmo Duarte, o presidente. E também referências a filmes brasileiros: "A sequência inicial de 'Rio 40 Graus'. A sequência do samba cantado por Grande Otelo em 'Rio Zona Norte'. O casamento em 'O Grande Momento'. A morte e flash-back de Zulmira em 'A Falecida'. Final de 'O Padre e a Moça'. A ruptura e a fuga em 'São Paulo S.A'. A fuga de 'Ganga Zumba'. A ruptura em 'O Desafio'. Recuperação e luta de "Matraga". A eleição de Vieira. A rebelião armada em 'Os Fuzis'. Fabiano preso em 'Vidas Secas'. Final de 'Deus e o Diabo' ". Anotações soltas, como que pontos de referência para ajudar a inventar o filme, possível parte integrante embora não escrita do roteiro.
"Temo que não possa fazer este filme, mas pelo menos vou escrevê-lo. As várias versões ficarão guardadas na medida do possível, o que poderá permitir uma análise mais profunda de todo o filme", anotou nas reflexões reproduzidas em "Revolução do Cinema Novo". "Arnaldo Carrilho me disse uma vez diante das ruínas de Pompéia (era um domingo entre janeiro e março de 1965) que Simon Bolívar subiu no Vesúvio e de lá meditou sobre a América Latina: daí partiu para a sua ação política. Verdade ou mentira, quero partir do vulcão."
Quando, para abrir meu estudo das teorias de cinema na América Latina, "A Ponte Clandestina", escolhi conversar sobre "América Nuestra", pegar o roteiro como se fosse um texto teórico, me deixei guiar por uma característica bem particular desta idéia de filme: seu tom de escrita quase automática, quase nem pensada, nem corrigida. Temos aqui algo assim como a idéia no instante mesmo em que vai sendo pensada, uma idéia que se desenvolveu e continuou sendo pensada nos filmes feitos a seguir. Claro, o texto foi relido depois de datilografado, uma ou outra correção feita à mão -a mais evidente delas a que risca o subtítulo "A Terra em Transe", mas aqui a aparência aberta, incompleta imprecisa, comum a tudo quanto é roteiro de cinema, aparece de forma mais acentuada. O roteiro aqui é só uma anotação primeira, a ser reelaborada para uma eventual discussão preparatória da filmagem.
Uma canção (de esperança, estava datilografado, mas a palavra foi riscada) está prevista na sequência oito, como resposta de Amor ao comentário ( "Não valho mais nada!") de Juan -prevista, mas não escrita. Igualmente prevista mas não escrita está a canção em que Diaz lamenta que nossa América não seja uma nova Grécia. Ou o poema da guerra. Ou as expressões em inglês no meio das falas de Julio Fuentes. Todas estas coisas seriam "escritas no diálogo final".
O que está no papel é uma anotação preliminar para chegar a um roteiro. É um texto para se ler com imagens. E o leitor de hoje tem até algumas imagens prontas para usar como lente de aumento sobre o texto: o Diaz de "América Nuestra" é ao mesmo tempo o personagem que está no papel e mais as imagens que temos dele em "Terra em Transe" e em "Cabezas Cortadas". Juan Morales é ao mesmo tempo o poeta que está no papel e mais o Paulo Martins vivido por Jardel Filho em "Terra em Transe". O mesmo com Júlio Fuentes, o mesmo com Sílvia, que hoje, mais que imagem livremente inventada a partir do texto, têm algo do que já vimos em "Terra em Transe".
São 44 páginas datilografadas no verso do papel timbrado de uma empresa transportadora, a Transnil. Glauber aparentemente não tinha estas anotações à mão quando desenvolveu as outras versões do roteiro. Ou aparentemente não precisava delas para continuar trabalhando esta tensão entre poesia e política que alimentou a maior parte de seus filmes, da estética da fome à estética do sonho. Tinha bem acesas na memória as duas imagens que orientam as diferentes versões e que aparecem aqui e ali rabiscadas num canto do texto: um vulcão, a boca de um vulcão e um homem de duas cabeças. O roteiro que temos aqui, além de texto impreciso e formador de um leitor cúmplice, como tudo quanto é roteiro é ainda um pouco mais impreciso e aberto do que tudo quanto é roteiro porque se propõe como explosão primeira, que passa rápido e quase nem consegue ser anotada: fica como convite para fazer cinema.

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