São Paulo, domingo, 24 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

o estranho caso da camisinha de Natal

OTAVIO FRIAS FILHO

"Hugo foi saindo do quarto, muito satisfeito porque tudo estava indo exatamente como o planejado. O plano era uma vingança maligna contra os pais. É que no último Natal ele tinha pedido o mais maravilhoso dos presentes, tão maravilhoso que os pais não quiseram dar"

Estava chegando o Natal. Em todas as casas, as crianças faziam seus pedidos.
"Quero uma bicicleta azul!"
"Eu quero um autorama com pista dupla!"
"Quero uma boneca que faz xixi!"
Mas na casa dele, Hugo ainda não tinha pedido nada. A mãe resolveu perguntar o que ele queria de presente.
"Quero camisinha."
"Quer o quê?", a mãe não entendeu.
"Camisinha."
"Você está tentando me dizer que quer uma camisinha de Natal, meu filho?", ela perguntou de novo.
"Uma, não. Muitas. Um montão de camisinhas."
A mãe respirou fundo.
O pai do Hugo chegou à noite em casa, chamou o filho, fechou a porta do quarto e começou:
"Meu filho, diz pro seu pai o que você quer de Natal."
"Camisinha."
"Por que, camisinha? Camisinha é coisa de adulto."
"Mas eu quero. Camisinha."
O pai chamou a mãe. Começou a briga.
"Olha o resultado da educação que você dá pra criança!", o pai falou.
"Se pelo menos você ficasse mais tempo em casa!", a mãe falou.
"Não fico em casa porque tenho que trabalhar", o pai falou.
"E por acaso eu não trabalho? Trabalho mais que você!", a mãe falou.
Hugo foi saindo do quarto, muito satisfeito porque tudo estava indo exatamente como o planejado.
O plano era uma vingança maligna contra os pais. É que no último Natal ele tinha pedido o mais maravilhoso dos presentes, tão maravilhoso que os pais não quiseram dar.
"É muito caro", o pai dizia.
"Quebra logo", a mãe dizia.
"Não é pra sua idade", o pai dizia.
"Pede outra coisa", a mãe dizia.
Hugo fez escândalo, chorou, esperneou, mas nada.
"Qualquer outra coisa", disse o pai.
"Menos isso", disse a mãe.
Já que podia pedir qualquer coisa, Hugo tinha resolvido pedir desta vez uma camisinha. Uma, não. Um montão.
Chamaram um psicólogo.
"Hugo, por que você quer tanto uma camisinha?", ele quis saber.
"Uma, não."
"Eu sei, um montão. Mas por quê?", o psicólogo insistiu.
"Porque sim. Camisinha."
A irmã do Hugo gozava dele. Dizia para as amigas:
"Sabe o que o meu irmão quer de Natal? Camisinha!"
E elas estouravam de rir.
Na escola, os colegas começaram a olhar esquisito para o Hugo.
"Sabe aquele? É meio louco. Quer camisinha!"
A professora chegou a avisar que ia suspender quem ficasse enchendo o Hugo com essa história de camisinha.
"Cada um é livre pra pedir o que quiser", ela deu bronca.
E o Hugo foi ficando cada vez mais decidido a ganhar camisinha de Natal.
As tias diziam:
"Não quer bola de futebol?"
"Um jogo de xadrez?"
"Uma malha?"
Não havia meios de convencer o menino. Quando decidia uma coisa, era difícil o Hugo mudar de idéia. Ele era teimoso.
Chegou a noite de Natal. Antes dos presentes, a ceia. A irmã do Hugo sentou à mesa e já foi provocando o irmão:
"Oi, camisinha!", ela alfinetou.
"Não torra."
"Vai ficar sem presente e pronto", o pai falou.
"Já que ele não pede eu mesma escolhi um", a mãe falou.
"Não quero."
Acabou o jantar, apagaram as luzes. A sala ficou escura e avermelhada pelas luzinhas da árvore. A avó tocou música no piano.
"Vamos abrir! Vamos abrir!", todo mundo dizia.
E começaram a achar os presentes e rasgar os embrulhos e dar gritos de felicidade. Hugo ficou sozinho, num canto, e nessa hora... Bom, nessa hora ele chorou. Chorou tanto que nem sentiu que a avó estava batendo de leve no ombro dele.
"Hugo. Hugo!", a avó dizia.
E apontou para a árvore, onde no meio do papel-celofane, das fitas e das caixas abertas tinha sobrado um presente intacto, num pacote dourado.
"É pra você! Seu nome está escrito no embrulho, vai abrir!", disse a avó.
Nem precisa dizer que era uma baita caixa cheia de camisinhas japonesas, coloridas e cada uma diferente da outra.
"Quem deu esse presente?", perguntou a mãe.
"Que brincadeira é esta?", perguntou o pai.
"Posso ganhar uma igual?", perguntou a irmã.
Todo mundo, é claro, desconfiou que quem tinha dado o presente era a avó. Mas ninguém teve coragem de falar nada. E a avó ainda foi dizendo:
"Quando os pais não podem atender um pedido de natal, porque não podem, é uma coisa. Mas quando os pais não querem porque não querem atender, Papai-Noel aparece e atende".
E aconteceu então uma coisa muito rara. Os pais pediram desculpa para o Hugo. O Hugo também pediu desculpa para os pais. A irmã aproveitou pra pedir desculpas pra todo mundo.
Todo mundo chorou, menos a vó.
Naquela casa, camisinha no Natal virou tradição. Uma coisa que se repete e todo mundo respeita. Todo Natal, davam uma caixa para o Hugo. Ele chegou a dizer:
"Pessoal, obrigado, mas acho que eu já tenho bastante camisinha."
Hugo cresceu, o tempo passou. Até que numa noite de Natal a avó chamou o Hugo para conversar. Ela já estava bem velhinha e dali a pouco o Hugo ia deixar de ser criança, ia virar adolescente.
Nessa noite, ela explicou porque camisinha é um brinquedo de adulto. E ele entendeu tudo o que tinha acontecido: com os pais, com a professora e o psicólogo, até com a avó.
E virou adolescente feliz da vida, com seu belo estoque de camisinhas. A maior coleção, diziam, de toda a cidade.

Texto Anterior: missa triste em latim
Próximo Texto: o homem do pau-brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.